CAPÍTULO QUATORZE

São Paulo – Brasil – 1866

 

                    Um antigo convento abrigava agora a família Burton em São Paulo. Ou pelo menos parte da família Burton, posto que o senhor da casa nunca aparecia por lá. Era a primeira vez em cinco anos de casados que os Burton iriam dividir um lar. Era assim que Isabel pensava ao embarcar, com o marido, para o “selvagem” Brasil. Ledo engano! Após o matrimônio, na primavera de 61, a senhora Burton mudou-se para a casa de número 14, da Square Montagu, a poucas quadras do Hyde Park, mas poucos dias depois de contrair o sobrenome Burton, viu seu marido partir em nova viagem, sem nem ao menos cumprir pequenas formalidades comuns a primeira noite de um casal. Pouco tempo depois, nomeado cônsul, novas viagens. E assim foi o primeiro ano de casados.

                    Depois veio a nomeação para o consulado de Fernando Pó. Novamente a Sra. Burton não fora convidada a acompanhar o marido. E assim se arrastaram os quatro anos de casados em solo britânico. Para não dizer que o Sr. Burton nunca aparecia em casa, houve sim, uma vez, mas apenas uma, em que ele compareceu ao endereço que “residia”. Isabel lembra-se daquele dia com fotográfica memória, apesar da fotografia ainda ser um experimento rudimentar e restrito a poucos técnicos daguerreoticos.

                    Era 1864. Burton entrou em casa esbaforido e sujo. Isabel pensava que ele só chegaria no dia seguinte, para enfrentar Mr. Speke no, segundo alguns vespertinos londrinos, “Debate do século”. O debate, que se daria no prédio da Real Sociedade Geográfica poria um fim no “Problema Nilo”, como estampavam as manchetes dos tablóides sensacionalistas. A peleja se arrastava há quase uma década e os dois oponentes eram intransigentes em suas alegações. Speke afirmava que o Lago Vitória era a nascente do Nilo Branco, e Burton alegava que era o Lago Tanganica.

                    Burton chegou arrancou a roupa e foi direto para a tina, hábito que raramente fazia ao chegar em casa. Alias, banho era um luxo mensal do marido, que nunca a Sra. Burton tivera o prazer de acompanhar. No dia seguinte, o Sr. Burton não se levantou cedo como de costume, apesar de estar a poucas horas do “duelo”, e o endereço da Royal Geographical Society: Kesington Gore com Exhibition Road, ser bastante distante de sua residência. Para espanto de Isabel, Richard acordou às onze horas e trinta minutos, junto com o pregoeiro que passava na porta anunciando a manchete do jornal da tarde: “Explorador Speke é morto em acidente de caça. Extra. Morre o explorador Mr. Speke”.

                    O pensamento de Isabel voltou para São Paulo. Ela sempre afastava aquela suspeita de sua cabeça. Dedicava-se agora em continuar sua leitura favorita. Chegara em suas mãos, um livro do escritor brasileiro, José de Alencar, de título bastante sugestivo: “Iracema, a virgem dos lábios de mel”. Identificara-se muito com a personagem principal, não pela doçura de seus lábios, mas por suas virtudes natas alardeadas no título. A Sra. Burton estava tão encantada com o romance que decidira traduzi-lo para o inglês, para que suas compatriotas pudessem conhecer a pujança daquela obra tão excitante.

                    Estava se tornando, também, profunda conhecedora da história brasileira, que tornava as suas noites suportáveis. Já conhecia todos os personagens das Entradas e Bandeiras; já sabia distinguir os períodos e nuances dos ciclos da cana e do ouro; e tinha grande admiração pelas guerras com nomes engraçados e sem sentidos. Emboabas: a primeira guerra civil das Américas, causava cólicas na jovem inglesa. A trama lembrava uma fábula de Esopo, com aves de pernas peladas litigando com aves peludas. Divertia-se muito repetindo nomes como Cabanadas, Balaiadas e Garrafadas. Não conseguia achar sentido nas palavras e muito menos nas manifestações. Mas além da história oficial e do romance do Alencar, tinha verdadeiro fascínio pela estória da escrava negra, que conseguia tudo que muitas brancas desconheciam, com os encantos com os quais cobria seu amante. A simples menção do nome de Xica da Silva tirava a bela mulher de cabelos loiros e olhos azuis translúcidos, do recato de sua nacionalidade. Cada vez que lia, ou ouvia um fato da vida daquela mulher surpreendente, principalmente naquela latitude, sentia um sentimento desconhecido aflorar em seu cérebro. Os relatos picantes das manobras praticadas pela negra, que dizem, não era tão encantadora assim, mas substituía essa carência com imaginação na arte da luxúria, faziam Isabel sentir um outro frenesi. Como se uma incontinência urinaria forte, fosse capaz de lhe descer perna abaixo. Como se um batalhão de formigas andasse em torno de suas partes. E finalmente, sentia-se como se um estrondo oco de um canhão enferrujado soasse na altura do seu ventre, ressoando, como um Big Ben dentro de seu cérebro. Isabel não sabia, apesar de sua cultura elevada, explicar aqueles sentimentos, pois há coisas que só a pratica ensina. Talvez fingisse achar, tratar-se de uma enfermidade tropical. Os sintomas eram bastante correlatos com algumas malarias africanas. Calores insuportáveis, acompanhados de febres, arrepios e calafrios, mesclavam-se a uma turvação momentânea dos sentidos racionais. Mas a Sra. Burton, empírica que era, descobriu um tratamento de banhos frios, eficiente no controle da moléstia.

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                    Naquele dia Isabel cumpriu a mesma rotina dos dias anteriores. Já se passavam dezoito meses, de enfado, desde a chegada a São Paulo. Não que Isabel não tivesse atividades para ocupar seu dia. Era até bastante ocupada com afazeres domésticos e causas nobres. Preocupada com o crescente número de emigrantes, abandonados à própria sorte, que perambulavam pela cidade, fundou o primeiro abrigo de mendigos de São Paulo. Essa missão gloriosa lhe dava alguns lampejos de alegria, pois travava contato com americanos, alemães, italianos e toda espécie de raças, vindas do norte, que aportavam no “país do futuro”. Mas eram pessoas de baixa classe social e limitação cultural evidente, não sendo possível a Isabel travar colóquios elevados. Mas para tal conversação também não encontrava problemas, posto que freqüentava assiduamente, os saraus literários do Arquivo Jurídico e de vários outros periódicos da cidade. Encontros que rendiam tardes agradáveis com renomados escritores, artistas e poetas da época. Mas apesar de todo movimento de um dia, Isabel invariavelmente deitava-se em estado de depressão e enfado. Alguma coisa lhe faltava, e apesar de às vezes, sentir o vazio, não conseguia diagnosticar aonde.

                    Mas naquele dia cumpria a sua rotina. Tomara as rédeas e já havia passado no Albergue Noturno, para a inspeção diária. Tomava agora, o caminho para a Serra de Mogi Guaçu e o seu puro sangue, algo raro naquela região, conhecia a trilha com apuro. Era comum, para o conjunto, embrenhar-se nas matas daquela serra, que tanta admiração causavam a Isabel. Para Rucinante, o cavalo, o tipo de solo, ou da vegetação, não causava nenhum dilema existencial ou racional, bastando somente ter trilha plana para o trote, e todo dia seria prazeroso.

                    Seguindo a amazona, sempre a meia distância, vinha sempre o criado Chico; negro esperto, que sabia de todas as noticias e versava sobre todos os assuntos, dominados ou não. Era moleque dos seus dezoito anos, que havia fugido a pouco das minas de Minas e encontrara refugio no consulado inglês, alegando ser um descendente bastardo de algum cidadão inglês. A solicitação de cidadania foi recebida com troça pelos funcionários do consulado, mas vendo garbo e imaginação, na prosa do esbelto negrinho, deram-no a vaga de Serviçal Geral. Chico nascera às margens do Rio das Velhas, precisamente em um casebre próximo a igreja de Santo Antônio da Roça Grande, um vilarejo próximo a Sabarabuçu. Por estar amparado pela lei, que o eximia de escravidão, omitiu sua alforria para poder ser “escravo” em uma mina. Sorte melhor, que morrer de fome pela mendicância.

                    Burton só permitia as andanças da esposa, escoltadas pelo beligerante criado, que estava sempre disposto a travar luta com qualquer um que não tirasse o chapéu para sua “ama”. Mas do mesmo modo que, Burton não podia vigiar, de Santos, se sua determinação estava sendo cumprida, também ficava privado, felizmente, dos dizeres maliciosos da sociedade paulistana. Os locais apostavam, em uma loteria secreta, quem seria o felizardo que faria brotar galhos na frondosa cabeça, “daquele inglês relapso com a belíssima esposa”. Isabel fingia não saber da ridícula e impagável extração, e ria dessa mania dos brasileiros de apostar em qualquer coisa.

                    Rucinante resfolegava e recusava-se a seguir por entre uma plantação de café. Chico, em seu jegue Rabit, alcançou em segundos a patroa.

                    - Chico, deve haver cobra ali, pois Rucinante não é de estranhar caminho.

                    O jovem, voluntariosamente, desceu de sua montaria e já com facão em riste, tosou a moita produtora de café. Do interior do pé-de-café saíram, não uma, mas duas jararacas entrelaçadas, em uma luta feroz, mas nada mortal. Rucinante resolveu lançar ao chão sua carga, e em poucos segundos Isabel estaria partida no chão, se a força providencial de Chico não a amparasse em seus braços. Isabel lançou um olhar agradecido e silencioso, ao fiel escudeiro e criado, enquanto as cobras no solo se enroscavam ainda mais. Chico que em sua mão direita tinha o ombro, e na esquerda a coxa de Isabel, fez menção de coloca-la no chão, mas viu que as cobras estavam rolando entre suas pernas. Uma das cobras existentes, entre suas pernas, ficou mais atenta do que as outras. Isabel sentiu o perigo da situação, e concordou mentalmente com seu carregador, que descer era por demais arriscado, e porque não dizer desnecessário naquele instante. Chico comprimiu suas mãos macias, que Isabel desconfiava agora, nunca ter visto uma pá ou instrumento similar. As cobras continuavam agora seu bailado insinuante, e Isabel, que de sua posição não podia avista-las, sentiu que uma estava mais decidida do que as outras. Chico querendo zelar pelo bem estar da “ama” elevou os quadris de sua carga, evitando assim um bote certeiro de uma das cobras. Isabel sentido o afastamento do perigo, começou a palpitar e resfolegar como se sua vida continuasse em risco. Chico procurando abrigo para sua “ama” caminhou pé-antepé para o interior do cafezal, deixando duas das cobras estateladas sobre o chão, em luta feliz e nada mortal. Temendo que sua “ama” tivesse perdido os sentidos, deitou-a sob uma sombra e bateu levemente, as costas da mão, em sua face rosada e maravilhosa. Isabel sentiu aquele carinho, bem intencionado, que apenas queria despertá-la de seu susto. Abriu os olhos e viu que estava debaixo de um frondoso pé, da planta que oferece o negro líquido revigorante. Cerrou as pálpebras e ficou ali, a recuperar suas forças. Sentia o aroma das bagas vermelhas da fruta, que comprimidas e manipuladas da maneira correta, geravam um grão torrado e grosso. Após esse primeiro processo, mentalizou o grão sendo moído em apertos sincopados e ritmados. Para obter uma perfeita alquimia da preferência nacional, a mistura deveria agora ser umidecida. Isabel já vira o líquido escorrendo pelo saco, caindo quente e saboroso, dentro de bules de bicos eretos e curvilíneos. Isabel sabia que o sabor do café era revigorante, mas agora descobrira que ao negro café era sempre bom adicionar algumas gotas de alvo leite. O resultado dessa mistura, tão divulgada naquelas terras brasileiras, era uma miscigenação de sabores e prazeres. Isabel sentiu que a Malária devia ter tomado seu corpo novamente. As bagas vermelhas do grão torrado estavam estourando como pipocas, atingidas por canhões, que ecoavam em sinos. Uma das cobras, presentes naquele cafezal, cuspiu seu veneno.

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                    Isabel entrou correndo dentro de sua casa, que no passado recente, fora um convento das Carmelitas. Podia sentir no ar os prazeres proibidos, sentidos por aquelas mulheres pela metade. Mulheres que, em nome de uma religião, não cumpriam, em sua plenitude, seu dever natural. Isabel sabia como era triste essa escolha. Mas a dela não tinha sido por escolha, mas por imposição, mesmo que do destino e da natureza. Isabel relembrava a aventura no cafezal e agradecia ao mesmo Deus, das antigas inquilinas, por haver colocado Chico em seu caminho, pois não saberia como enfrentar aquelas cobras. O risco fora imenso, e Isabel desconhecia, na literatura mundial, alguém que tivesse enfrentado três cobras no mesmo dia.

 

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