CAPÍTULO DEZENOVE

Acuruí – Brasil – 2003

“Ao acordarmos, antes do nascer do sol no dia seguinte, vimos pelos sinais de sangue dos nossos animais que eles haviam sofrido muito com um vampiro...” 

Richard Burton-“Viagens aos planaltos do Brasil”

    

                    De Cocho D’água a Acuruí são aproximadamente, vinte quilômetros. As ladeiras do caminho de Acuruí são o maior obstáculo para o cavalo. A poeira fina engolia a pata do cavalo até a altura do joelho.

                    Após circular a represa formada pelo rio das Velhas, que inundou o antigo vilarejo de Rio das Pedras, cheguei a atual cidade, localizada no alto de um morro, entre duas igrejas. Praticamente uma única rua, sem nenhuma espécie de pousada ou hotel. Fui recepcionado na única venda que estava aberta, pelo Zé Pena, uma espécie de guardião do vilarejo, que me permitiu acampar, atrás da igreja.

                    Não entendi muito bem, porque alguns moradores se aglomeraram, a poucos metros do meu acampamento, enquanto eu erguia minha barraca. Interpretei que fosse pura falta do que fazer daquela gente curiosa, pois, não creio, que meu equipamento seja assim tão moderno, a ponto de atrair olhares invejosos. Comecei a temer que pudessem estar mal intencionados e lastimei, novamente, a ausência de Xico.

                    Mais uma noite dormida ao relento e completamente desprotegido. Xico deve estar perdido. Agora, os olhares dos transeuntes tornavam-se acaloradas conversações entre eles, que resultavam em sonoras gargalhadas. Já contavam mais de duas dezenas, o número de rostos risonhos a apontar e gesticular em direção ao meu acampamento. Definitivamente, alguma coisa estava para acontecer.

                    Montei meu pequeno fogareiro e comecei a cozinhar a única coisa que aprendi na arte culinária: macarrão instantâneo. Com a visão dos meus afazeres enfadonhos e a chegada do crepúsculo, a turba barulhenta se dirigiu para, sei lá que esconderijo medonho, possivelmente, com intuito de elaborar um plano para me atacar à noite. Comi fartamente a pequena porção grudenta e me tranquei atrás daquela porta de lona.

                    Começo a traçar essas linhas no meu diário, quando, definitivamente, a noite cai lá fora. Está calor. Abro a porta, deixando apenas o mosquiteiro fechado. Uma visão me faz gelar os ossos. No afã de instalar-me não notei, que atrás de uma igreja, principalmente no interior de Minas, quase sempre existe um cemitério. Agora eu entendo a curiosidade engraçada, que causei naquela platéia cruel. Eu estou acampado, exatamente, dentro do cemitério anexo a igreja.

                    O terror que eu tenho da noite, agora ganhou motivos de sobra, para aumentar. Começo a lembrar do Rei Vikran e do vampiro hindu. Os zumbis da noite anterior se juntam ao folclore da barraca. Eu já estou esperando a entrada abrupta do Iogue que irá me ordenar que busque, cativo, o vampiro contador de história. Preciso controlar minha mente. Preciso, antes de qualquer coisa, controlar meu corpo, que não para de tremer. Senão, serei presa fácil para qualquer invasor de carcaça alheia.

                    Os vampiros são comuns a todas as culturas, e nem sempre são o clichê de condes com capas pretas e dentes afiados. Existem milhares de manifestações desse invasor de almas. O Baital indiano era eficaz em substituir a personalidade de sua vítima tornando-a um Zumbi ambulante. Como será o similar nacional? Talvez um Chupa-cabra.

                    Já escuto vozes e barulhos fantasmagóricos sobre a barraca. Não! São apenas morcegos fazendo um vôo rasante de reconhecimento. Morcegos. Vampiros. Será que são mesmo parentes? Preciso pegar no sono urgente. Vou pensar coisas alegres para distrair meu cérebro apavorado. Tenho que ter coragem. Como todo explorador deve ter. Não imagino Livingstone, Speke ou Burton tremendo de medo dentro de suas barracas. Mas será que eles viajavam sozinhos? E esses insetos que conseguiram penetrar pela tela do mosquiteiro? Será que eles acompanhavam todos os exploradores do mundo? São insuportáveis, maldito mosquitos. Por que no meu sonho eles não existem? E essas dores por todo meu corpo? No sonho eu não sinto dores, por que essas dores?

                    Mas devo ser forte, amanhã quando o sol surgir os temores terão passado. Devo lembrar que estou efetuando uma grande aventura, igual, ou maior do que a de Burton. Ele descobriu o Lago Tanganica, mas eu estou aqui, tal qual um Vikran, as margens do Lago do Rio das Pedras, dormindo dentro de um cemitério, esperando a visita do vampiro.

                    Será que Burton sofreu tanto?

 

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