CAPÍTULO 27

Tiradentes – Brasil – 2003

                    A febre alucina minha mente. Estou refrescando o calor no chafariz de São José. A poeira vira barro dentro da minha garganta. O atalho era como todo bom atalho: curto, porem penoso. Meu cavalo suga uma das fontes do chafariz, no total de três. A do meio é a única que cai sem obstáculos labiais. No passado era o bico destinado a lavagem de roupas, enquanto eu e meu cavalo, sorvemos as águas destinadas a nossas espécies. O São José de Botas me encara com desvelada reprovação. O porteiro do céu estira a língua lançando-me um jato de água na face. Meu cavalo relincha um sorriso estridente. Puxo suas rédeas com força, privando-o do gole de água derradeiro, aquele que mata a sede. A febre me torna cada vez mais insensível.

                    No Largo das Forras me abandono em horas de observação. O fluxo incessante de turistas endinheirados me turva os prédios coloniais. Só vejo máquinas metálicas recém adquiridas testando suas juntas no calçamento desalinhado. Esnobe fauna de celerados. A febre me torna cada vez mais irritadiço.

                    Não fui eu! Não fui eu que dei cabo daqueles livros raros. Não sei do paradeiro daqueles manuscritos do século XVIII. A conspiração me acusou e me condenou com muita eficiência. Sou inocente! Pegaram-me para bode expiatório, tal qual um barbudo do passado. A febre me torna cada vez mais repetitivo.

                    Essa terra do mártir fabricante de dentaduras está me deixando louco. Louco como o alferes tagarela que abortou a revolução na manjedoura. Louco! Não sou louco! A febre me torna cada vez mais insano.

                    Joaquim Silvério dos Reis também me traiu. Eu sou inocente! Essa conspiração quer tirar minha vida. Talvez eu nunca tenha tido uma vida. Talvez tudo seja um delírio febril. Xico talvez tenha razão em dizer que eu sonhe demais. Então o pessimismo toma conta de mim. Eles conspiram contra mim. Todos. A cidade, meus vizinhos, meus colegas de faculdade e por que não o governo. Eles sabem que eu sei a verdade. Tudo é uma farsa.

                    As pichações rupestres; a pobre semimacaca-humana Lucy; o tropeço do império que reergueu papal; o pouso da águia na lua cinematográfica; Tudo uma farsa. O suicídio de Cláudio Manoel da Costa, tal qual um Herzog inconfidente. Como todos acreditam na história escrita e reescrita por erros humanos. Ninguém que escreveu a historia do século XVIII está aqui para confirmar uma única letra impressa. O que diremos de milhares de anos atrás. Temos que acreditar em papeis, pedaços brancos de claras ilusões, contaminados com negras incertezas. A febre me torna cada vez mais poético.

                    Por que todos querem me destruir? A conspiração está fechando o cerco ao meu redor. Querem sufocar minha revolta. Libertas Quae Sera Tamen. Quero arrebentar minhas correntes como o nativo da conjuração. Quero vencer meus inimigos e provar que o mundo conspira contra mim. A febre me torna cada vez mais corajoso.

                    As pousadas de Tiradentes conspiram contra o dinheiro existente em meu bolso. Decido acampar ao lado da igreja de São Francisco de Paula. Por que não de Assis? Assim não me importaria com os vermes que agora dominam meu corpo. O santo mendigo fedia e muitos juram que lhe beijariam a face caso o encontrassem pelo caminho. Hipócritas religiosos. Beijem o mendigo que se transfigura em Francisco. A febre me torna cada vez mais santo.

                    Os habitantes que sobem a ladeira lançam reprovações contra minha tenda armada displicentemente. Cospem palavras talhadas ao meio pela boca meio cerrada. Povo imundo e desnecessário. Aspiram com sua insignificância o ar que está aqui desde o inicio dos tempos. Segue o repicar dos sinos que pregoam a lenda do crucificado. Crêem no altruísmo do cristo local enforcado. Inúteis imbecis da fé. Inúteis animais que defecam sua existência pelo torrão azul, que os idiotas alegam ser formado por mais água do que terra. Mas sob a água esconde-se mais terra, ignóbeis constatadores de falácias. A febre me torna cada vez mais extraterrestre.

                    Vejo discos no céu e tenho a certeza de que não são estrelas que caem. Os sinais celestes mudam de lugar para tornar impossível minha orientação. Alguém trama minha perdição. Estou perdido pelo caminho da estrada real. A febre me torna cada vez mais realista.

                    Não fui eu que perdi os livros. Não sei quem deu cabo deles. Não sou eu que estou perdendo esse livro. Talvez seja você. Os livros estão perdidos. Todos eles. Este inclusive. Talvez Xico tenha razão e eu não seja capaz de dar cabo de nada até o fim. A febre me torna cada vez mais fatalista.

                    A febre traz o calafrio e com ele o sono. Esse traz os sonhos que pari os pesadelos. Conspirações que se cruzam e tornam a realidade cada vez mais absurda. O suor lava o saco de dormir. Os animais cacarejam o amanhecer.

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