CAPÍTULO 33

Cunha – Brasil – 2003

                    Estou no alto da serra do mar na cidade de Cunha. Agora falta apenas descer a serra e xegar triunfante a Parati.

                    Xeguei na noite passada, por volta das 22 horas a essa simpática cidade paulista, divisa com o estado do Rio de Janeiro. Fui hospedado pelo Senhor Xico (Xico, sempre Xico) no Hotel Belvedere pela misera quantia de R$ 15,00 apesar de o quarto ter dois andares e uma duxa sensacional. Diz meu anfitrião que conseguiu enxergar uma boa pessoa em mim, apesar de meu estado lastimável.

                    Acordei hoje ás 5 horas da manhã revigorado da longa maratona do dia anterior, pois fui obrigado a cavalgar noite adentro, fato que até então não tinha ocorrido. Não esperava encontrar duas longas serras entre o vale do Paraíba e a serra do mar.

                    De Cunha a Parati existem várias trilhas usadas pelos tropeiros nos séculos áureos daquela estrada. No caminho eu escolho a rota. Hoje finalmente xego a Parati após essa maratona louca. Espero encontrar o Francisco por lá, pois temo que ele se perdeu definitivamente pelo caminho. Eu acordei cedo não porque seja um madrugador nato, mas porque venho dormindo sempre ao lado das igrejas. Assim acabo virando santo. Santo Xico. Foi assim em Acuruí, ao lado da igreja e cemitério: em Ouro Preto se não está ao lado de uma igreja vc não está em Ouro Preto; Lagoa Dourada, ao lado da matriz; Tiradentes ao lado de uma igreja; Madre de Deus, ao lado da matriz; Cruzília e Cunha, dá-lhe igreja matriz. Por que vcs axam q eu só acordo cedo? Os campanários das igrejas são ótimos despertadores.

                    De Cunha a Parati são 47 quilômetros iniciando pela estrada asfaltada SP 171, nome bastante sugestivo, não axam? Foram 25 quilômetros de subida passando pelo monumento a Paulo Virgilio, um soldado fuzilado naquele lugar durante a revolução de 1932. È bom ver a historia preservada em um monumento bem limpo, pintado e decorado, inclusive com o capacete do soldado. A frase “Tombou para que ficássemos de pé” inscrita em uma placa de 1957 mostra a consideração de seus amigos combatentes. A subida, cruel para o animal, que fizemos em mais de quatro horas é polvilhada de fazendas dignas de cinema com cercas brancas, gramados perfeitos, paisagismo elaborado e florestas de pinheiros e araucárias. O xeiro da beira da estrada é de uma variedade incrível. No meio da subida desviei uns três quilômetros para a Pedra da Macela de onde avistei toda costa norte de São Paulo e toda a baia de Parati. De volta a estrada principal, no alto da subida castigante, fui presenteado com a Caxoeira do Mato Limpo. Molhei a cabeça e abasteci o cantil. Após quase cinco horas de subida íngreme cheguei ao topo, na divisa entre São Paulo e Rio. Ali terminava o asfalto e se avistava um vale de paredões e a mais pura Mata atlântica disponível no mercado. Quase intocada.

                    Quase 700 quilômetros percorridos até ali, faltando menos de vinte e cinco para completá-los. Por ali desciam várias trilhas distintas, percorridas por tropeiros, regentes, exploradores, fidalgos e bandoleiros. Quantos não xegaram até ali durante o período áureo do Caminho Velho que trazia ouro das Minas de Cataguases? Quantos ali não tiveram seus sonhos destruídos após centenas de quilômetros e dezenas de dias de árdua viagem, puxando mulas e caminhando muitas vezes a pé?Ali era o final da viagem e ali ficava o maior desafio de vencer os bandoleiros que “aliviavam” um ou dois muares da tropa. Ali estava eu, preparado para finalizar minha aventura em apenas duas dezenas de quilômetros serra abaixo. Toda a apreensão e medo que não tive durante toda a viagem se concretizavam ali. Temia pelo já combalido estado de minha montaria, meu fiel companheiro. Mas não tinha como voltar atrás e a adrenalina tomou conta da razão.

                    Num gesto brusco nas rédeas, me lancei estrada abaixo. Naquele momento já não era mais Xico. Era Quixote, andrajoso, abatido, marcado pelo sol, a esporear seu corcel morro abaixo, tirando do mesmo os últimos suspiros de fôlego. Nos primeiros quilômetros era só o vento a tentar impedir a cavalgada alucinante, mas logo começaram a brotar do xão, inimigos gigantes, verdadeiros menires que eram evitados com golpes rápidos na rédea. Mais algumas cabeças pétreas surgiam do nada e golpeavam impiedosamente as ferraduras de minha montaria, já judiada pelo excesso de carga e cavaleiro. Os danos ao animal eram inevitáveis e as patas traseiras já sangravam copiosamente. Mas Quixote não perecia, lançava-se ora a direita, ora a esquerda, para as bordas do caminho, fugindo das cabeças de pedra, mas sendo recebido pelos xicotes das árvores, que agora se transformavam em soldados centenários com armaduras de Jacarandá, Imbuia, Ipê e tantas outras nobres vestimentas. A qualquer momento se esperava a queda, imposta pela montaria a cavaleiro tão imprudente e desalmado com seu animal. A ilusão de Quixote foi dando aos poucos lugar a razão e comecei a perceber todos os grunhidos oriundos de minha fiel montaria.

                    Essa coisa de alucinação do Francisco pega. Não é possível que também contraí a Febre.

                    O animal agonizava, torto, sobre o atrito ineficiente da ferradura sobre o solo.Eram crocs no arreio, crecs na sela e batidas fracas no interior do animal. As minhas mãos comprimiam com força os freios que já não transmitiam nada. Já dominava todos os sons e suas origens, quando de repente um novo acorde entrou na sinfonia. Não conseguia identificar aquele martelar metálico, pois não havia peças de tal material em meu conjunto: cavaleiro e cavalo. Consegui parar o animal e imediatamente todos os sons cessaram, somente o grito metálico continuava imperando. Aumentava agora. Xeguei a temer que alguma peça de minha bagagem tivesse adquirido vida e estivesse a resfolegar e relinchar uma queixa sentida. Foi ai que percebi que o batido ecoava em todas as direções. Não. Não ecoava. Na verdade ele vinha de todas as direções e agora se juntava a ele outros acordes, alguns tristonhos, alguns ameaçadores e outros até anunciando que tinham bem me visto.

                    Se fosse Francisco diria que estávamos cercados por feras sanguinárias. Eu, em minha loucura desenfreada de combater a montanha em um Down Hill inconseqüente, quase perco o melhor dela. Arapongas, sábias, bem-te-vis e dezenas de espécies de pássaros duelavam por todo aquele imenso vale que serpenteava a serra do mar. Maldisse a minha ignorância ornitológica, pois queria saber o nome de cada um daqueles espécimes. Como me seria útil agora, a presença de um daqueles naturalistas que havia conhecido a pouco, nas historias de Francisco.

                    Agora da fauna passei a observar a diversidade de flora que me circundava. Centenas de espécies, por que não milhares. Samambaias gigantes, orquídeas e tantas outras plantas e árvores que não saberia nomear. Mas para que nomeá-las? Elas não precisavam de um nome para existir. O nome nada significava para plantas e animais naquele lugar. Eles não precisavam receber correspondências. Cada uma daquelas criaturas sabia o seu papel e conheciam a sua identidade, funcionando, cada qual em sua função, sem necessidade de autoridade alguma a nomeá-las.

                    Eu sentei na beira da curva tendo abaixo de mim um pequeno abismo. Descobri que não era em Parati meu destino. Era ali. Estava ali no meio do nada cercado por uma diversidade enorme de seres, vivos e merecedores de respeito.

                    Por um instante a loucura de Francisco havia se apoderado de mim, mas agora eu recobrava a razão e via que era na natureza que eu encontraria minha felicidade. Não seriam sonhos tolos e personagens distantes, mas simplesmente o tipo de vida simples e natural a minha volta.

                    Mais convicto do que nunca, decide que o sonho devia morrer.

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