CAPÍTULO 35
Parati –
Brasil – 2003
Trotava pela Rua Santa Rita a poucos metros do meu destino. Um calçamento de pé-de-moleque
apresentava resistência ao casco do cavalo. O casario do século XVIII
apresentava as características esperadas. Destoava do de Ouro Preto pelo abuso
de cores e rendilhado dos balcões. Sentia nas narinas um odor novo, na verdade,
uma brisa ferruginosa que me parecia putrefata. Ganharia em breve o cais, se não
fosse um obstáculo pelo caminho. Não era uma pedra, mas uma enorme poça que
tomava todo o caminho a minha frente. Parece que a maré local teima em querer
transformar Parati em Veneza. Lembrando minha ignorância sobre as coisas do
mar, preferi tomar a esquerda entrando na Rua da Matriz e dobrar a direita na da
Lapa. Novamente à direita na Rua do Fogo e retornava a meu traçado original.
Foi assim que vi o mar pela primeira vez.
Em frente à Igreja de Santa Rita apeei do meu cavalo e segui hipnótico de
encontro ao mar.
O mar é verdadeiramente tudo que falam. Imenso, azul, amedrontador. Só não
posso certificar seu sabor, pois não vejo praia a minha frente, apenas um cais
de pedra. O chacoalhar constante contra a parede e o cheiro diverso não me
encorajam a provar aquela água. Ajoelho sobre a grama seca do fim de inverno e
fico a observar algumas ilhas a minha frente. Corpúsculos imersos naquela
imensidão. Quase um universo.
O som do mar é cortado por um estrebucho tenebroso, acompanhado de um baque
forte contra o solo. Voltei os olhos para minha montaria e a encontrei largada,
morta, sobre as patas. Nenhuma emoção me demoveu e voltei a fitar o mar. O mar
agora era verde sombreado pelas nuvens cinzentas que eclipsavam o sol.
Pássaros mergulhavam contra a água, barcos cambaleavam sobre a linha do
horizonte e nenhum barulho era ignorado pelos meus ouvidos. Quantos aventureiros
chegaram até ali? Quantos sonhos navegaram por aquele mar? Sonhos. Era essa a
mola propulsora do mundo. O mar era o mesmo de séculos atrás, mas os homens e
seus sonhos eram outros.
- Está perdido em sonhos, Francisco? – ouvi a voz de Xico atrás de mim.
- Não ouvi sua chegada. Veja Xico, que coisa bela é o mar.
- Eu sei. Já havia visto. O cavalo morreu, não vai fazer nada?
- O que posso fazer? A Inês é morta, morta está! Não tenho o dom da
ressurreição - dizia sem tirar os olhos do mar.
- Como pode ser tão estúpido? Não vê que está completamente louco?
- Louco por sonhar, meu caro amigo prático. Sonhou o homem em sair da caverna,
sonhou o povo com um Messias, sonhou os reis com impérios, sonhou a amante com
um amado, sonhou Colombo com Índias, sonhou Anhangüera com Esmeraldas, sonhou
Edison com a luz. Como pode recusar o sonho? Como pode maldizer essa dádiva
exclusiva da raça humana?
- O sonho mata a vida, corroí a realidade.
- O sonho é o ensaio do sucesso!
- O sonho é alimento dos tolos. O esperto não sonha, faz. Motivo do fracasso
de sua vida miserável. O que você tem? Nada!
- Eu tenho a capacidade de sonhar. Posso ser rei, posso ser cavaleiro errante,
posso ser até mesmo Sir Richard Francis Burton.
- Outro defunto que não sonha mais. Mortos não sonham. Esfomeados não sonham.
- Até mesmo os miseráveis sonham, veja que prodígio. Sonham com o fausto, com
a fortuna, a fartura, a sorte.
- Prefiro o milionário que não sonha com a fome, a pobreza, e vive plenamente
a realidade.
- É miserável apenas aquele que não sonha. Estaríamos nas cavernas frias se
um insatisfeito semimacaco herbívoro não tivesse sonhado com um assado.
- O sonho está acabando com nossas vidas. Devemos manter os pés no chão.
Sonhador nunca foi virtude. Todos te xamam de Sonhador. Te insultam, te enganam,
abusam de nossas fraquezas. Sonho é fraqueza nesse mundo cruel e realista. Os
sonhos acabaram, só resta a fria realidade. Você já deve ter lido isso, até
mesmo nos seus fantasiosos livros.
- Os livros são convites para a festa do sonho. Você não “Axa”?
- O sonho é esse cavalo morto. Em breve estará podre e fedendo.
- Seu estúpido! Não está entendendo. Como posso viver, Xico, sem sonhos?
- Você é um irresponsável inútil. Cruzou setecentos quilômetros para ver
essa lagoa, apenas um pouco maior que as outras. E agora? O que acrescentou isso
a sua miserável vida? Continuará sendo o idiota Francisco de Sabará, sem
respeito, sem prestigio, sem dinheiro. Eu não quero acompanhar essa sina.
- Você participou do sonho. Percorreu a Estrada Real junto comigo. Junto com
Burton.
- Que Estrada Real? Um caminho imaginado, uma estória imaginária em meio a
caminhões e perigos, esses sim, reais, da mais pura realidade, sem nenhuma
realeza ou riqueza. Até sua estrada tem nome de real. Se xamasse estrada dos
Sonhos seria motivo de xacota.
- Mas veja, eu tenho a pedra. A pedra é real. Onde ela está? Lembrei! Está na
bolsa, presa ao cavalo. – corri em direção ao animal morto, começando a
revistar todos os alforjes.
- Não existe pedra nenhuma! Isso é sonho também – corri em direção a
Francisco acocorado sobre o animal morto
- Aqui! Está aqui! Eu vou te mostrar que é Real.
- È sonho seu estúpido, como tantos outros que me impõe. Isso precisa parar.
- Veja, olhe para minha mão! Ela está aqui!
- Cale-se idiota! Não quero ouvir suas sandices.
Lancei as mãos sobre o pescoço de Francisco. Meus polegares comprimiam,
fortes, sentindo seu pomo de Adão estalar de encontro à traquéia. Meu
oponente não esboçava nenhuma reação e suas mãos não interceptaram as
minhas. Sentia o ar diminuir ao redor de nós dois. As nuvens turvavam meus
sentidos e o sol enfraquecia. Sentia minha cabeça pesar como se absorvesse
todos os pecados do mundo. Um nó na garganta travou meus pensamentos. Um
pigarro nervoso tomou conta de mim. Fechei mais as mãos, cravando oito dedos na
nuca resistente. O pescoço foi sedento docilmente ao ataque. O sonho estava
morrendo. A realidade iria vencer. Sacolejei as mãos para tirar todos os
pensamentos da cabeça. O sonho fenecia. The dream over. Lembrei McCartney sem
Lenon, Sancho livre de Quixote. Zorro alforriado do Tonto índio. O gordo sem o
estúpido magro. Por que precisamos sempre de duplas? Parcerias inúteis. A
realidade não precisa do sonho. Apertei mais meus polegares querendo encontrar
os outros dedos no meio do caminho. Venci. O sonho lançou um último suspiro,
sem nenhuma frase profética.
O sol sumiu de vez, e minha mente começou a turvar. Minhas pálpebras pesavam
pelo crime que cometia. Meus joelhos dobravam diante o esforço. Cai exausto ao
lado da carcaça eqüina. O sonho morria e a realidade não resistia ao esforço.
Antes de desfalecer, creio que em um desmaio reconfortante, meus olhos visaram,
caída ao meu lado, a poucos centímetros, uma pedra branca e brilhante, que
quase cegava. Minhas mãos estavam negras como nada jamais visto neste mundo.
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