CAPÍTULO DEZ
Petrópolis –
Brasil 1867
“Se algum dia esse país falir, será devido ao fato de,
tendo o bastante para saldar vinte dessas dívidas, não ter guardado bastante
dinheiro para as despesas domesticas.”
Richard Burton
O palácio imperial tinha a suntuosidade das residências dos Marajás do Sind.
Uma profusão de objetos antagônicos enchia os cômodos intermediários que
levavam Burton à sala de audiência. Múmias, ossadas de saurídeos, máquinas
a vapor, engenhocas, tranqueiras e similares, digladiavam-se por espaço, dando
ao edifício, um ar de museu do absurdo.
Ao entrar na sala de audiência, Burton encontrou o imperador do Brasil de sandálias
de couro, calça de linho surrada, com suspensórios, e uma camisa branca, de
mangas compridas, arregaçadas até a altura do bíceps. O homem tinha uma barba
considerável que lhe caia até a altura do peito. Ao perceber a presença de
Burton, o Imperador correu com uma mão estendida, cruzando rapidamente toda a
extensão da sala, que estava frugalmente decorada. Apenas uma grande mesa de
madeira maciça, com o brasão da coroa, compunha o ambiente. Sobre ela, vasos e
um aparelho estranho, que tinha um cone dourado, possivelmente bronze, pendurado
em um gancho do mesmo material, ligado por uma corda a uma caixa de madeira,
adornada,também, com o brasão imperial.
-Mounsier Burton, quanta honra! Sou seu mais empedernido fã. Seu “Peregrinações
a Medina e Meca”, realmente, figura entre meus livros favoritos. – enquanto
falava balançava vigorosamente a mão alheia.
- Fico honrado, majestade! – Agradeceu Burton, intimamente irritado por ser
sempre reconhecido por um único livro, não obstante, haver escrito mais de
cinqüenta obras.
- Mas que perfeição. Quase não se nota que é um inglês a proferir tal
frase. Falas o português muito melhor que meus patrícios. E o sotaque, poderia
jurar que é de um carioca da gema, como dizem por aí. – Dom Pedro enquanto
falava arrastava Burton pelo braço até à mesa. – Veja Mr. Burton, quando
imaginaria que, no remoto Brasil, iria encontrar orquídeas tão perfeitas. Pois
essas são nativas. O meu hobby favorito é tentar, eu digo, tentar, criar uma
nova espécie. Entende de Botânica, Sr. Burton?
- Infelizmente não é minha especialidade, Alteza – Disse Burton, declamando
a última palavra, e lançando um olhar, de cima em baixo no monarca, notando
que esse não era assim tão alto.
-Mas a que devo essa inestimável visita do amigo? Fui informado de que está de
férias na cidade, em companhia de sua jovem e bela esposa. Por que não a
trouxe a nossa audiência? Gostaria muito de conhecer a mulher que tornou cativo
o maior aventureiro de nossa época.
- Infelizmente, a Sra. Burton saiu hoje cedo em cavalgada, pelas matas que tanto
a fascinam. – disse Burton lembrando, que realmente, Isabel era jovem e bela,
assim como as matas brasileiras.
- Uma amazona. Prática admirável em uma mulher. Mas temo informar que as matas
brasileiras não são seguras como as pradarias inglesas, Sr. Burton. Eu acho
uma temeridade que uma donzela inglesa, indefesa, cavalgue sozinha pelo meu Império.
Deveria ter me solicitado uma escolta, o que cederia com grande prazer. – Dom
Pedro falava, enquanto podava, delicadamente, algumas folhas.
- Agradeço a gentil oferta, Majestade, mas não é preciso. Isabel está
acompanhada de um meu criado, da mais alta confiança. Chico é um crioulo
esperto, alforriado, profundo conhecedor das vicissitudes brasileiras. Com ele
Isabel estará segura. – disse Burton
-Sendo assim, voltemos ao nosso encontro. – disse Pedro, não conseguindo
evitar, em seu liberal cérebro, algumas insinuações maldosas – O amigo está
gostando do meu pequeno país? Eu sei que já visitastes inúmeros lugares, e
que o nosso país, talvez não chegue à altura das fascinantes maravilhas que já
presenciastes. Não temos aqui pirâmides milenares, muito menos cidades
sagradas a serem invadidas. Alias, sofro muito com essa carência. Falta ao
Brasil algo de grandioso, uma obra digamos, faraônica.
- Não, majestade! Estou encantado pelo vosso país. O que falta de historia em
sua jovem nação, sobra em encantos naturais. Alem do que, acredito, que o
Brasil será o império do futuro. Uma nação adormecida que irá se erguer,
forte e impávida, sobre todas as outras do Mundo – exagerou Burton sem saber
bem o porquê, mas considerando a frase um hino perfeito.
-Vejo que compartilha a opinião da intelligentsia de meu país. Mas temo
desapontá-lo. Esse povo, que tenho por obrigação em chamar de meu, é de uma
indolência enraizada. A mistura de raças não favoreceu o caráter dessa
gente. Nós europeus de sangue, jamais compreenderemos a capacidade que eles têm
de levar tudo na base do estratagema. Para tudo eles arrumam uma desculpa. Para
tudo tem um ”jeitinho” – disse o imperador Pedro II, filho do primeiro.
– Eu não gosto do presente que recebi do meu pai. Preferia imensamente ser
presidente a imperador. Talvez assim, realmente, tivesse algum poder de mudar as
coisas. Aqui não temos uma Monarquia estruturada, e um povo colaborativo, como
minha amiga Vitória. Falta-me uma classe nobre de verdade, pois meu avô saiu
distribuindo títulos a toda espécie de aventureiros, verdadeiros sanguessugas.
Tipos que só querem saber de levar vantagem em tudo. Esse é o Império que
governo, Mr. Burton. Como queria ser presidente... Como Lincoln, por exemplo;
veja que coisa fantástica, poder levar, através do voto do povo, o país para
onde quiser. Ganhar o cargo de Deus, Sr. Burton, aqui nesta terra, não nos dá
nenhum privilégio. Aqui caberia bem o caudilho.
- Mas Vossa Majestade... – iria começar Burton uma contra argumentação,
quando foi interrompido com um aperto de mão firme, no antebraço.
- Não, caro Richard. Abandone esse protocolo estúpido que, sei também, não
aprova. Chame-me de Pedro, pois afinal de contas, após ler tanto de suas
aventuras, o considero meu intimo amigo. – Interrompeu Pedro, querendo evitar
a argúcia das argumentações do inglês. – Além do que, vejo que sou muito
mais novo, se me permite a indelicadeza em era-lo.
- Eu sou de 21, e você? – disse Burton, aliviado por abandonar as
formalidades que tanto lhe embaraçavam. – Realmente não aparenta, se me
desculpa era-lo, ser mais novo do que eu. Deve ser por causa da barba.
- Pois sou – disse o barbudo nada irritado – Sou de 26. Realmente sofro
muito com essa minha preferência. Alguns idiotas chegam a achar que meu pai é
meu filho, pois os retratos de meu pai sempre foram, meticulosamente retocados,
não permitindo jamais era e-lo em idade avançada. Era vaidoso meu velho. Os
meus retratistas já me colocam como um ancião, apesar de só ter 41 anos.
Realmente essa barba me envelhece sobremaneira. Mas o povo gosta de um
governante barbudo. Como se ilude com a imagem essa gente. Alguém deveria criar
uma ciência para estudar esse comportamento humano...
- Mas Pedro, voltando ao assunto anterior; tomei conhecimento de um Senhor muito
empreendedor que vive no Rio de Janeiro, e que tem efetuado verdadeiros milagres
na estrutura da cidade e no progresso do Brasil. Um banqueiro muito conceituado
na Inglaterra e um investidor corajoso. Eu só não me recordo do nome dele no
momento. Parece-me que é Iri...
- Um moleque! – alterou-se o imperador, rasgando no ar a frase de Burton – já
sei de quem o senhor está se referindo, e lhe aviso que aqui e em todas as
minhas residências esse nome é impronunciável. Um homenzinho aventureiro, que
quer tomar as rédeas do meu reino. É daquele tipo que lhe preveni há pouco.
Faz tudo por um título de nobreza. Faz de tudo para se sobressair a minha
pessoa. Mete-se no ramo das ferrovias e teve a pachorra de fundar um Banco, mas
ele pode esperar que em breve lhe corto o topete. Já estou com as barbas de
molho. Estou manobrando para tomar-lhe o Banco e leva-lo a ruína. Um
mequetrefe...
- Desculpe amigo – acalmou os ânimos Burton, que temia causar um enfarte no
velho barbudo. – Não queria lhe causar esse desgosto, devemos estar falando
de pessoas distintas. – Mentiu Burton, sabendo que o perfil apresentado, só
poderia se encaixar no do futuro Barão de Mauá.
- Desculpe meu destempero, mas é que esses tempos bicudos não estão fazendo
bem a minha úlcera. Essa Guerra do Paraguai arrasta-se bem mais que o
planejado. Entramos nessa roubada só para aplacar a insatisfação popular,
que, diga-se de passagem, tem a ver com vocês ingleses. A guerra é o ópio do
povo, caro amigo. Enquanto não inventam nada melhor para substituí-la, nada
como uma guerrinha para fazer renascer o patriotismo dessa gente, que esquece
todos os problemas e se empenha em destruir o inimigo, que nós sabemos, não é
tão perigoso assim. – suspirando – mas alguma coisa está dando errado. Por
que Lincoln conseguiu o que queria com sua Guerra e eu não? Para Lincoln tudo
era mais fácil. E que morte honrosa: Assassinado em um teatro. Onde você
estava no dia da morte de Lincoln?
- Eu recebi a notícia apenas sete dias após o ocorrido. Um mensageiro de Sua
Majestade, a Rainha Vitória, informou-me o fato. No dia em que Lincoln morreu,
eu estava desembarcando no Brasil, precisamente em Santos. Sete dias depois já
tinha conhecimento da notícia. – rememorou Burton, lembrando-se do mensageiro
vestido de baiana, que lhe entregou o telegrama confidencial.
- Nossa que prodígio. Apenas sete dias após o ocorrido. Para o Brasil isso é
um recorde. Certamente a vossa rainha deve ter um serviço de informações
muito eficiente. Mas nada comparável ao sistema que pretendo implantar em
breve. Observe – passando a mão sobre o aparelho que estava em cima da mesa
– O Sr. Bell inventou esse aparelho, que era muito grande e desproporcional,
mas solicitei que fizesse alguns modelos compactos. Na verdade esse é o
primeiro protótipo criado, do que será no futuro fartamente comercializado –
batendo em um gancho metálico várias vezes – Sr. Costa? Solicite a copeira
que traga chá com torradas para dois, aqui na sala de audiências. – pousando
o cone dourado sobre o gancho – Não se espante Sr. Burton, não estou a falar
sozinho e meu juízo ainda está em perfeita ordem. Eu apenas me comuniquei com
o serviçal através deste engenho. Em poucos instantes, verá entrar por aquela
porta meu pedido.
-Nossa, que fantástico! – com verdadeiro espanto, o inglês – Isso parece
até bruxaria. – exagero notado com desconfiança pelo imperador.
- O Sr. Bell está desenvolvendo essa “magia”, para era apresentá-la na
Feira da Filadélfia de 76. Esse é um segredo, que somente nós, eu e Mr. Bell,
e agora, o senhor, logicamente, temos ciência. Eu serei o primeiro a utilizar o
aparelho em público, na tal feira americana. Uma tática criada por mim para
promover o invento. Um monarca representando a tradição, utilizando a última
novidade em tecnologia. Mr. Bell vibrou com minha idéia. Sabe como são esses
inventores: muito geniais para criar parafernálias, mas péssimos com relação
às coisas práticas. Tenho todo esse tempo para criar a primeira frase,
transmitida via fio, da história da humanidade. Minha primeira idéia era:
“Um pequeno sussurro para um homem, mas um grande grito para a Humanidade”,
mas sussurros e gritos poderiam criar dupla interpretação, e ambigüidade é
uma coisa perigosa. Penso em homenagear algum poeta brasileiro, mas não decidi
por qual...
- Camões! Por que não, Camões? – interrompeu eufórico Burton.
- Mas Mr. Burton, Camões não é brasileiro. E além do mais se fosse para
agraciar um poeta estrangeiro, um português talvez não fosse a melhor escolha.
Meus súditos poderiam considerar uma ofensa, uma tentativa de devolver essa
Terra, ao seu antigo estado de Colônia.
- Desculpe a sugestão... – disse Burton, visivelmente desapontado -Seja o que
quiser.
- Isso! – berrou em soprano acorde, o imperador – Algo nesse feitio. Seja o
que quiser...Frases curtas geram ótimos efeitos. Estudos científicos
comprovam. Não... Não. Esta ficou parecendo fim de prece. Seja o que seja! Não,
ainda parece uma prece. Que questão difícil de se resolver... – golpeando a
testa com a palma da mão - Isso! Eureka! Eis a questão! Ser ou não ser!...
Shakespeare, Mr. Burton! Shakespeare! Vosso poeta Maior. “Ser ou não ser”.
Mostrará erudição e lançará um desafio ao novo empreendimento humano. Será
que vai funcionar ou não?
- Sendo assim, pelo menos, recite no original – palpitou Burton descordando
secretamente da escolha – “To be or not to be”.Tornará a frase compreensível,
a todos os presentes, sem auxilio de tradutor.
- Em breve colocarei um deste em cada canto desse país. E assim que as outras
nações tiverem, a lucidez e a visão, desse humilde monarca, poderemos
integrar o mundo inteiro. Aí, Sr. Burton, o mundo se tornará uma pequena vila
e notícias como a morte de nosso ilustre democrata Lincoln, serão recebidas em
tempo real. – discursou Pedro, que de tanto balançar o cone no ar, soltou o
fio que estava pregado ao aparelho.
- É dessa visão progressista que o Mundo precisa, caro Pedro – bajulou
Burton querendo entrar no assunto desejado. – Homens com Vossa magnificência
estão em falta neste mundo tradicionalista. – exagero absorvido com satisfação
pelo imperador – Qual outro monarca, tem o brilhantismo em deixar dezenas de
estrangeiros percorrerem o interior de seu país, sem causar empecilhos?
Qualquer governante, sem imaginação, veria nisto um ato de agressão à
soberania, mas o amigo tem a consciência que tais expedições são para o
engrandecimento de sua nação. Eu fico realmente admirado quando escuto os
relatos de tantos europeus que aqui estiveram, que enaltecem o país e, nas
entrelinhas, prestam também uma homenagem a sua augusta figura. Foi, atraído
por essa clareza de visão, que resolvi também me embrenhar nos caminhos do
interior brasileiro, para também ser testemunha, da liberdade e da felicidade
que gozam o povo brasileiro. Gostaria que o amigo me concedesse a Portaria,
licença necessária, para circular livremente pelo reino. – terminou,
mostrando-se aliviado por encerrar aquela farsa.
- Ora, imediatamente, é só pegar o aparelho e em poucos minutos terá sua
Portaria. Compreende que essa formalidade se faz necessária, no caso de funcionários
diplomáticos, a fim de evitar o descontrole das informações que saem do país.
Dizem meus assessores que é para evitar espionagem. Veja que absurdo. Mas
realmente, meu reino tem recebido dezenas de visitas ilustres: de botânicos,
antropólogos, artistas, e toda sorte de homens de ciência, o que me agrada
sobremaneira, pois me trazem noticias e fatos, que até mesmo eu, Imperador do
Brasil, desconheço. Meu Instituto Histórico está repleto de achados
interessantes, juntamente com minha coleção de múmias, que, diga-se de
passagem, é minha maior paixão. O Dr. Lund, antropólogo dinamarquês,
mandou-me um exemplar de uma preguiça gigante, que como não coube em meu
museu, mandei colocar no jardim do Paço Imperial. Mas infelizmente os cachorros
deste país, ignoro se quadrúpedes, ou bípedes, tiveram a audácia de
surrupiar no silêncio da noite. Agora, para se ver um espécime genuinamente
brasileiro, precisamos ir até o museu de Copenhague. Por falar nisso, como vai
até o interior, se encontrar o Dr. Lund, por favor, mande minhas recomendações.
Dizem que ele habita uma caverna, próximo a vila de Lagoa Santa, aonde dizem, a
água é milagrosa. Meu genro esteve no local para curar uma disfunção
domestica, voltou curado do problema, mas extremamente chateado com Lund, que o
fez esperar sobremaneira, não o recebendo no fim das contas... Se a água de lá
curar úlcera, pode trazer um frasco. – terminou com a mão na pança.
- Fico agradecido com o tratamento e prometo, que encontrando o Dr. Lund
transmitirei vosso recado. – a frase de Burton foi cortada, pelo entrar
barulhento de uma escrava, que equilibrando uma bandeja, informava que não
tinha chá na despensa, somente café.
- Veja Sr. Burton, que absurdos sofro por essa sociedade cafeeira. Privam-me do
chá das cinco, obrigando-me a ingerir esse veneno para meu estomago. Por causa
do chá seu país perdeu a América. Eu ainda abdico e deixo essa gentalha por
conta e risco. – e agora, tirando uma garrafa de alguma gaveta oculta da mesa
– Sr. Burton, cá entre nós... Já tomou uma cachacinha?
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