CAPÍTULO DEZESSEIS

Bombaim – Índia – 1842

                    Após o incidente do Trinitty College, em Oxford, o Cel. Burton, comprara um cargo para o jovem filho, no exercito da Companhia das Índias Orientas. Richard se incorporou ao 18º regimento, lotado na região de Goa. Era hoje seu primeiro período de folga, das maçantes tarefas de limpar latrinas, polir armas e descascar batatas.

                    O jovem curioso já dominava os caminhos daquela cidade portuária, que ganhara o nome engraçado dos portugueses que ali estiveram, e consideraram o lugar , Bom Baim, ou seja, Boas Baias. Talvez por ser tão boa assim, tornara-se o porto mais importante da Índia. Burton caminhava a passos largos, por vielas estreitas, em direção a praia de Chowpatty, para tomar um banho de mar, tranqüilo, na Back Bay. O banho de mar estava se tornando um hábito comum em todo mundo, apesar dos manifestos contrários de alguns médicos, que insistiam em afirmar ser esse costume prejudicial à saúde.

                    Desviava-se das vacas, dos pedintes, dos Brahmana orando e dos Vaiçya oferecendo seus produtos à porta de suas lojas coloridas. Evitava encostar-se nos Niravasitas, os excluídos, não por acreditar que poderiam contaminar sua alma, mas por saber que, muitos eram infestados por piolhos e parasitas maiores. Burton não se incomodava com aquele sistema de castas, que dividiam os Indianos em Brâmanes, Chátrias, Vaixiás e Sudras, respectivamente, religiosos, guerreiros, comerciantes e serviçais. Considerava que em toda cultura, sempre haverá classes, e mal nenhum existe em determiná-las com exatidão. Seria interessante ver em Londres, os “homens sem classe” serem catalogados como párias e declarados intocáveis. Burton, que nunca se adaptara ao vegetarianismo, não conseguia mais, ver tantos ruminantes, sem poder imaginá-los dentro de um prato, bem passados e regados com Curry. As vacas sagradas sabiam de sua condição, e abusavam, parando em todo lugar inoportuno, criando sempre novos obstáculos para o jovem cadete. Faltavam duas quadras para alcançar a marina, quando de repente, o volume de pessoas, na rua, cresceu abruptamente, tornando a passagem quase impossível. Burton, que apesar da licença, de cinco dias, mantinha-se fardado, utilizou a prerrogativa do uniforme poderoso e ganhou espaço, em meio a multidão. Já ia se dirigir a um dos aglomerados, para indagar qual o motivo da manifestação, quando sua voz foi abafada por um rufar de tambores, que vinha da praia. A multidão imediatamente começou a bailar e a cantar em sânscrito, língua que Burton ainda não dominava completamente.

                    Quando ganhou a orla a multidão se multiplicou em milhares de vezes. Era o Festival Anual de Ganesh, o generoso, e pelo visto, adorado Deus da sabedoria indiano. Sobre a multidão, milhares de Elefantes, de todas as formas e materiais, navegavam em um mar de turbantes. Elefantes rústicos de papel, com quatro braços e trombas retorcidas. Paquidermes elaborados, adornados com pedraria e brocados caros. Imagens ricas e pobres, caprichosas e desleixadas, que, invariavelmente, ganhavam o fim destruidor da imersão nas águas, agora fétidas e repletas de dejetos, do Mar da Arábia. Aquele carnaval religioso era uma das dezenas de festas daquele povo hindu. Elaboradas alegorias eram fabricadas, para depois serem submersas no mar. A água tinha um papel importante naquela cultura, não apenas como fonte de hidratação, mas também como um elixir, capaz de lavar a alma e as impurezas. Burton já vira pessoas submergirem em águas poluídas, voltando do fundo das águas, com a boca a transbordar puro lodo, e o sorriso a irradiar êxtase fervoroso.

                    Aquele encontro com o filho de Pawati trouxe uma nostalgia, inexplicável, ao peito do jovem inglês. Ele creditou aquele sentimento ao espírito alegre da celebração, que tinha o caráter de clamar pela volta do Deus no próximo ano. Longe de casa a muitos meses, lembrou da mãe, e de sua primeira infância. Lembrou do apelido carinhoso de “meu elefantinho” , que ganhava da mãe, quando merecia alguma reprovação. Acreditava que a analogia com aquele ser colossal, era devido ao seu desajeitado modo de andar e quebrar objetos pela casa. Nesse exato instante, tirando-o de suas lembranças, um Ganesh, nitidamente de prata, passou sob os olhos de Burton. Não poderia crer que aquele povo sofrido, despendia tanto esforço e dinheiro, com um Carnaval, para ele, sem sentido. Burton enrolou ainda mais a esteira de bambu, que trazia debaixo do braço, deu meia volta nos calcanhares e se lançando em direção ao “Hotel Bom Baim”, resignou sua desilusão:

                    - É! Hoje não vai dar praia.

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                    Já se passavam sete anos de Índia, e Burton, apesar de suas constantes desavenças hierárquicas, conseguira galgar o posto de Capitão. Durante todo esse período colaborara com a anexação das regiões do Sind, Cachemira e Punjab, sempre se infiltrando no meio das comunidades locais e detectando possíveis rebeldes.

                    Foi numa dessas incursões que Burton, tendo de beber da água de um rio “sagrado”, para se fazer convincente em seu disfarce, contraiu cólera pela primeira vez. Afastado das missões secretas, alojou-se em um pequeno vilarejo na região Sind e dedicou os meses de convalescença a escrita. Coletou todas as estórias e lendas da região, enchendo duas arcas de manuscritos. Chegou as suas mãos uma versão original do Kamasutra, ao qual dedicou horas de estudos. Era patético vê-lo acocorado, em diarréias demoradas, a ler o livro dos prazeres.

                    Foi também nessa época que conhecera Vikran e o vampiro. O rei Vikran era um personagem real que havia vivido no início do século I d.C. Tinha a curiosidade como principal virtude, ou defeito, se preferirem. Seu maior sonho era encontrar-se com um baital, assistente de Kali, deusa da morte, que tinha o poder de se apoderar do corpo de qualquer um. Procurando um Iogue local, este o convenceu a passar uma noite, em sua companhia, dentro de um cemitério. Lá chegando o Iogue instruiu Vikran para que o mesmo caminhasse sete quilômetros para o Leste e lá, encontrando novo cemitério, teria sua entrevista com o vampiro. Vikran encontrou o ser pendurado, tal qual um morcego, em uma árvore morta e retorcida. Com muito custo conseguiu convencer a criatura, para que a mesma o acompanhasse até a presença do Iogue, que não sabia Vikran, pretendia destruir a aberração. No caminho de volta para o primeiro cemitério, o vampiro passou a contar várias estórias e lendas ao rei. Burton achou a estória de Vikran bem simplória, mas entendeu que ela era apensa uma introdução, ao objetivo principal da trama, que era relatar as várias lendas indianas em apenas uma narrativa. A história de Vikran e o vampiro, nada mais era, que uma compilação de todas as estórias contadas pelo povo. O vampiro hindu fazia o mesmo papel que Sherazade, na pérsia, representou no conto das 1001 noites. O capitão, que murchava como uma planta, devido ao rigor do cólera, aproveitou como ninguém, sua acamada moléstia, para traduzir para a língua inglesa as histórias indianas. Nascia ali o escritor profícuo e laborioso.

                    Mas agora, passada a experiência colérica. Burton voltava, bem mais magro, para suas atribuições militares. Fora destacado para o comando de um batalhão de sipaios, soldados indianos do exército, na remota região da Cachemira, quase esquina com Afeganistão. A missão do batalhão de Burton era debelar freqüentes rebeliões de facções locais.

                    Devido a distância, com qualquer centro mais desenvolvido, Burton penava com equipamentos de baixa qualidade e munição, por diversas vezes estragadas. Era comum o cartucho não deflagrar, ou ficar entalado no cano da espingarda, muitas vezes provocando um tiro pela culatra. Burton já somava dezenas de baixas, com sipaios cegos e mutilados. Tentando resolver o problema, Burton passou horas a fio, untando com gordura, os cartuchos de balas, para que os mesmos, lubrificados dessa maneira, cumprissem seu rumo normal. Utilizara para isso, todo o estoque de banha de porco e vaca que havia, em sua restrita despensa.

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                    Era dia de combate.

                    Os rebeldes inimigos se aproximavam utilizando táticas de guerrilhas. O capitão Burton, utilizando as táticas militares tradicionais, havia posicionado sua tropa no alto da colina.

                    - Companhia, alinhar armas! – gritou com tamanha excitação, por ser aquela, sua primeira campanha militar, no comando de um batalhão.

                    - Ateeenção tropa! Aguardaaar ordem de tiro! – gritou com tamanha hesitação, por achar que aquela formação não era a mais adequada.

                    - Municiar armas! AAAAtirar. - gritou na fração de segundos que avistou um rebelde, mal camuflado.

                    Os sipaios do exercito da Companhia das Índias Orientais inglesas eram a mais bem treinada força militar da época. Eram indianos; muçulmanos ou hindus, que abraçavam as armas, não por causas expansionistas, mas por convicção religiosa, ao gordo salário recebido no final de cada período anual. As ordens eram seguidas a risca, e assim a Companhia conquistara toda a Índia Continental.

                    - Municiar armas! – chegou a ordem ao ouvido atento do soldado Fatehpur Sikri. Se fosse um torneio para eleger o mais rápido atirador, ele estaria alguns milésimos de segundos à frente de seus adversários de tiro. Fatehpur tirou o cartucho da bolsa pendurada à tiracolo, e levou o artefato até a boca, para arrancar a tira de papel de uma das extremidades, que abriria o cartucho lacrado. Quando o cartucho chegou a poucos micro-milímetros dos lábios do soldado, seu nariz apurado, de hindu devoto, inalou o odor da mais sagrada reencarnação de Vishnu. Instantaneamente o cartucho foi abandonado ao chão.

                    - Isso está com cheiro de Vaca! – Gritou mais alto que os primeiros disparos que já começavam a espocar.

                    O grito do hindu ultrajado, para quem havia poucos pecados piores que, a simples idéia de colocar um pedaço de boi na boca, provocou uma enxurrada de vômitos e cusparadas. O tiroteio só não cessou por completo, porque a metade muçulmana da tropa, indiferente a proibição hinduísta, continuava a dilacerar os cartuchos com os dentes e municiar suas espingardas de um tiro. Mas era questão de segundos, até que um soldado, seguidor de Maomé, resolvesse analisar melhor seu cartucho.

                    - Por Allah! Eu toquei em animal impuro! Por Allah, fui lançado em eterna danação! Esse cartucho está ungido com banha do impuro – Chorou copiosamente o jovem Firuz Sharaz, recém convertido ao islamismo; única maneira que encontrou para fugir da casta hindu em que nascera: a dos sem castas. A simples menção da palavra porco, aumentaria ainda mais sua pena nas pedras ardentes do inferno islâmico.

                    Agora sim, o desastre era iminente, pois a outra metade da tropa, que antes ria da sorte dos hindus pecadores, agora cessava de atirar e entrava na sinfonia dos vômitos e das cusparadas. Burton ficou atônito no começo, mas depois tentou recobrar o comando, repetindo insistentemente a ordem:

                    - Soldados, emmm formação! Municiar armas! – gritava histérico diante da visão de muçulmanos em prostração, rogando a Allah piedade, e de alguns hindus representando, e bem, uma vontade louca de se lançar, de peito aberto, na arma do inimigo; destino menos cruel, do que o de ter violado o tabu milenar.

                    - Corneteiro! Toque de retirada – Ordenou já se colocando em fuga para o quartel.

                    O corneteiro hesitou em colocar a boca no seu instrumento de trabalho temendo que tudo estivesse untado com gordura animal.

                    O episódio só não se transformou em um massacre, porque os rebeldes tinham o mesmo fervor religioso dos soldados, e percebendo o ocorrido, solidarizaram-se com o infortúnio alheio, unindo-se aos irmãos de fé, em profunda e irada manifestação de protesto.

                    Ao ver chegar seu capitão sem tropa, o comandante do posto militar indagou Burton sobre o sucedido:

                    - Não foi nada! Eu acho que foi só uma indisposição alimentar da tropa.

                    Aquela “indisposição alimentar” transformou-se em um boato, que começou a correr por toda a Índia, de que o exercito lubrificava os cartuchos com gordura de porco e vaca. O porco impuro aos muçulmanos. A vaca sagrada para os hindus. O que era um simples boato foi se transformando em certeza, até que na primavera de 57, centenas de sipaios iniciaram uma revolta que arrastou a Índia para um ano de rebeliões sangrentas. No final desse período de carnificina, a Companhia perderia o domínio sobre a Índia, transferindo o poder para a Coroa Britânica.

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