CAPÍTULO DEZESSEIS
Bombaim – Índia
– 1842
Após o incidente do Trinitty College, em Oxford, o Cel. Burton, comprara um
cargo para o jovem filho, no exercito da Companhia das Índias Orientas. Richard
se incorporou ao 18º regimento, lotado na região de Goa. Era hoje seu primeiro
período de folga, das maçantes tarefas de limpar latrinas, polir armas e
descascar batatas.
O jovem curioso já dominava os caminhos daquela cidade portuária, que ganhara
o nome engraçado dos portugueses que ali estiveram, e consideraram o lugar ,
Bom Baim, ou seja, Boas Baias. Talvez por ser tão boa assim, tornara-se o porto
mais importante da Índia. Burton caminhava a passos largos, por vielas
estreitas, em direção a praia de
Desviava-se das vacas, dos pedintes, dos
Quando ganhou a orla a multidão se multiplicou em milhares de vezes. Era o
Festival Anual de
Aquele encontro com o filho de
- É! Hoje não vai dar praia.
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Já se passavam sete anos de Índia, e Burton, apesar de suas constantes desavenças
hierárquicas, conseguira galgar o posto de Capitão. Durante todo esse período
colaborara com a anexação das regiões do Sind, Cachemira e Punjab, sempre se
infiltrando no meio das comunidades locais e detectando possíveis rebeldes.
Foi numa dessas incursões que Burton, tendo de beber da água de um rio
“sagrado”, para se fazer convincente em seu disfarce, contraiu cólera pela
primeira vez. Afastado das missões secretas, alojou-se em um pequeno vilarejo
na região Sind e dedicou os meses de convalescença a escrita. Coletou todas as
estórias e lendas da região, enchendo duas arcas de manuscritos. Chegou as
suas mãos uma versão original do Kamasutra, ao qual dedicou horas de estudos.
Era patético vê-lo acocorado, em diarréias demoradas, a ler o livro dos
prazeres.
Foi também nessa época que conhecera Vikran e o vampiro. O rei Vikran era um
personagem real que havia vivido no início do século I d.C. Tinha a
curiosidade como principal virtude, ou defeito, se preferirem. Seu maior sonho
era encontrar-se com um
Mas agora, passada a experiência colérica. Burton voltava, bem mais magro,
para suas atribuições militares. Fora destacado para o comando de um batalhão
de sipaios, soldados indianos do exército, na remota região da Cachemira,
quase esquina com Afeganistão. A missão do batalhão de Burton era debelar
freqüentes rebeliões de facções locais.
Devido a distância, com qualquer centro mais desenvolvido, Burton penava com
equipamentos de baixa qualidade e munição, por diversas vezes estragadas. Era
comum o cartucho não deflagrar, ou ficar entalado no cano da espingarda, muitas
vezes provocando um tiro pela culatra. Burton já somava dezenas de baixas, com
sipaios cegos e mutilados. Tentando resolver o problema, Burton passou horas a
fio, untando com gordura, os cartuchos de balas, para que os mesmos,
lubrificados dessa maneira, cumprissem seu rumo normal. Utilizara para isso,
todo o estoque de banha de porco e vaca que havia, em sua restrita despensa.
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Era dia de combate.
Os rebeldes inimigos se aproximavam utilizando táticas de guerrilhas. O capitão
Burton, utilizando as táticas militares tradicionais, havia posicionado sua
tropa no alto da colina.
- Companhia, alinhar armas! – gritou com tamanha excitação, por ser aquela,
sua primeira campanha militar, no comando de um batalhão.
- Ateeenção tropa! Aguardaaar ordem de tiro! – gritou com tamanha hesitação,
por achar que aquela formação não era a mais adequada.
- Municiar armas! AAAAtirar. - gritou na fração de segundos que avistou um
rebelde, mal camuflado.
Os sipaios do exercito da Companhia das Índias Orientais inglesas eram a mais
bem treinada força militar da época. Eram indianos; muçulmanos ou hindus, que
abraçavam as armas, não por causas expansionistas, mas por convicção
religiosa, ao gordo salário recebido no final de cada período anual. As ordens
eram seguidas a risca, e assim a Companhia conquistara toda a Índia
Continental.
- Municiar armas! – chegou a ordem ao ouvido atento do soldado Fatehpur Sikri.
Se fosse um torneio para eleger o mais rápido atirador, ele estaria alguns milésimos
de segundos à frente de seus adversários de tiro. Fatehpur tirou o cartucho da
bolsa pendurada à tiracolo, e levou o artefato até a boca, para arrancar a
tira de papel de uma das extremidades, que abriria o cartucho lacrado. Quando o
cartucho chegou a poucos micro-milímetros dos lábios do soldado, seu nariz
apurado, de hindu devoto, inalou o odor da mais sagrada reencarnação de
- Isso está com cheiro de Vaca! – Gritou mais alto que os primeiros disparos
que já começavam a espocar.
O grito do hindu ultrajado, para quem havia poucos pecados piores que, a simples
idéia de colocar um pedaço de boi na boca, provocou uma enxurrada de vômitos
e cusparadas. O tiroteio só não cessou por completo, porque a metade muçulmana
da tropa, indiferente a proibição hinduísta, continuava a dilacerar os
cartuchos com os dentes e municiar suas espingardas de um tiro. Mas era questão
de segundos, até que um soldado, seguidor de Maomé, resolvesse analisar melhor
seu cartucho.
- Por Allah! Eu toquei em animal impuro! Por Allah, fui lançado em eterna danação!
Esse cartucho está ungido com banha do impuro – Chorou copiosamente o jovem
Firuz Sharaz, recém convertido ao islamismo; única maneira que encontrou para
fugir da casta hindu em que nascera: a dos sem castas. A simples menção da
palavra porco, aumentaria ainda mais sua pena nas pedras ardentes do inferno islâmico.
Agora sim, o desastre era iminente, pois a outra metade da tropa, que antes ria
da sorte dos hindus pecadores, agora cessava de atirar e entrava na sinfonia dos
vômitos e das cusparadas. Burton ficou atônito no começo, mas depois tentou
recobrar o comando, repetindo insistentemente a ordem:
- Soldados, emmm formação! Municiar armas! – gritava histérico diante da
visão de muçulmanos em prostração, rogando a Allah piedade, e de alguns
hindus representando, e bem, uma vontade louca de se lançar, de peito aberto,
na arma do inimigo; destino menos cruel, do que o de ter violado o tabu milenar.
- Corneteiro! Toque de retirada – Ordenou já se colocando em fuga para o
quartel.
O corneteiro hesitou em colocar a boca no seu instrumento de trabalho temendo
que tudo estivesse untado com gordura animal.
O episódio só não se transformou em um massacre, porque os rebeldes tinham o
mesmo fervor religioso dos soldados, e percebendo o ocorrido, solidarizaram-se
com o infortúnio alheio, unindo-se aos irmãos de fé, em profunda e irada
manifestação de protesto.
Ao ver chegar seu capitão sem tropa, o comandante do posto militar indagou
Burton sobre o sucedido:
- Não foi nada! Eu acho que foi só uma indisposição alimentar da tropa.
Aquela “indisposição alimentar” transformou-se em um boato, que começou a
correr por toda a Índia, de que o exercito lubrificava os cartuchos com gordura
de porco e vaca. O porco impuro aos muçulmanos. A vaca sagrada para os hindus.
O que era um simples boato foi se transformando em certeza, até que na
primavera de 57, centenas de sipaios iniciaram uma revolta que arrastou a Índia
para um ano de rebeliões sangrentas. No final desse período de carnificina, a
Companhia perderia o domínio sobre a Índia, transferindo o poder para a Coroa
Britânica.