CAPÍTULO 23
Lafaiete –
Brasil – 2003
De Ouro Preto até Lafaiete está o único percurso em que a Estrada Real é unânime.
A estrada Real apresenta vários entroncamentos, variantes e atalhos, mas nesse
trecho ela é única, sem nenhuma espécie de ramificação. Após a saída de
Ouro Preto encarei a subida da serra de Ouro Branco descrita por Saint Hilaire
em seu livro. A estrada é sinuosa, estreita e com grande fluxo de caminhões
pesados. Com muita sorte não fui lançado acostamento abaixo.
Faltavam poucos quilômetros para chegar a Conselheiro Lafaiete, ainda no
distrito de Ouro Branco, e minha montaria começou a empacar a cada dez metros.
O peso da carga, aliada a alimentação precária que vinha mantendo, fizeram
meu cavalo sentir o cansaço daquela empresa. Já conseguia distinguir o barulho
do casco contra o asfalto e reconhecer naquele som fraco que o animal não ia
bem. Os apetrechos dependurados no lombo do cavalo pendiam perigosamente para o
lado, forçando a já combalida estrutura. Uma ferida em carne viva já aflorava
no dorso esquerdo. Foi o barulho de uma panela perdida pelo asfalto que me
acordou de minha crueldade em prosseguir. O simples pensamento em puxar o arreio
já freou o passo lento do animal. A parada se seguiu o tombo. O cavalo se lançou
ao chão sem a menor cerimônia, dobrando as patas dianteiras, tal qual um
camelo, ou dromedário, se preferir mais uma corcova na estória. Fui lançado
ao chão como um projétil de catapulta, só não encontrando o solo de cara,
porque o criador nos dotou de mãos fortes e ágeis, que apararam, não sem
escoriações, minha queda. Fiz menção de erguer em protestos contra o animal,
mas ao virar o rosto, em direção ao mesmo, o encontrei já quase desfalecido.
O pescoço, agora lembrando uma girafa, esforçava-se em buscar uma misera grama
às margens da estrada. A língua vermelha pálida lambia o asfalto quente, que
parecia refletir um lago. Por um instante fiquei feliz em saber, que as miragens
não eram meu privilégio, e que mesmo no reino dos irracionais, a razão às
vezes era vencida pela fantasia.
Ao meu redor só a desolação da estrada, que de repente, cessara o fluxo contínuo
de veículos. O cinza do asfalto destacava o verde ressecado da vegetação. Foi
ai que notei uma casa, à margem esquerda da rodovia, oculta por Jacarandás
seculares. Uma casa caiada de branco, com janelas, portais e eiras pintados de
azul celeste. Reconheci logo, o padrão arquitetônico da época colonial.
Demovi da mente a idéia de arrastar minha montaria até lá. Caminhei mancando,
pois não sei por qual motivo minha perna doía, até a varanda da casa. Foi só
então que percebi a pequena placa na entrada: “Casa de Tiradentes”.
Meus conhecimentos históricos deviam estar me pregando uma peça, pois não
entendia como a casa de Tiradentes poderia estar tão afastada de Ouro Preto.
Mas era sim, a casa do tagarela que pôs a perder a revolução brasileira. Subi
até a varanda e contornei toda a residência, sem encontrar viva alma, ou mesmo
morta alma, que seria um estado mais natural para tal manifestação. Ao
completar o périplo, já estava descendo a escada de madeiras rangentes, quando
do subterrâneo da casa, tal qual uma alma morta, pois viva não sairia do
subterrâneo, surgiu uma figura negra. Um velho negro encurvado em quase uma
centena de anos, que na verdade saia, não das profundezas, mas simplesmente do
porão da casa. Ele se apresentou como o guia da casa e começou a declamar seu
vasto conhecimento sobre o antigo morador. De cada dez palavras, espirradas em
velocidade prodigiosa, eu conseguia compreender apenas duas, talvez três. Vou
chamá-lo de Sampaio, não por que este seja verdadeiramente o seu nome, ou para
ocultar sua real identidade, mas por simplesmente não ter conseguido entende
seu nome. Na quarta tentativa achei deselegante pedir para repetir de novo,
aquilo que ele sabia muito bem, mas não conseguia tornar inteligível aos meus
ouvidos. Fiz uma cara de quem havia entendido e o assimilei com a figura de um
velho que perambulava, pelas ruas de minha infância, que se dizia ex-combatente
de uma guerra na Itália, “pra lá de Ubá”, e foi enterrado como indigente
no cemitério local. Ao velho Sampaio, possível expedicionário brasileiro, se
não dedico um livro, vai ao menos essa lembrança.
O velho Sampaio a minha frente, que era realmente muito parecido com o original,
até mesmo no jeito desconexo de falar, ofereceu o interior da casa para me
abrigar naquela noite. Disse que essa concessão não seria permitida num futuro
próximo, pois em breve, a Casa de Tiradentes receberia nova administração,
com mobília de época e um novo guia. No olhar quase centenário daquele homem,
não sei se vi uma lágrima ou se nossos olhos ficam assim, lustrosos, após
tantos anos de visão. Ele contou sua infância e vida passada ali, justamente
entre aquelas árvores seculares, que no passado eram dezenas, quase centena.
Contou sobre a dificuldade que era receber um médico no local, e que quando a
morte chegava antes do discípulo de Esculápio, drama maior era transportar o
corpo, em rede, para o cemitério mais próximo. Foi ai que percebi, que quase
anexo à casa do alferes com nome de dentista, havia algumas casas simples, que
demonstravam estar ali na época da conjuração mineira. Conjuração que me
privo de comentar, pois não é essa minha intenção nesse livro. Digamos
apenas que não compactuo com meus amigos de cátedra.
Foi com muito pesar, que recusei o convite de pernoitar na casa, aonde renomados
cidadãos planejaram a Revolta da Derrama. Nome pelo qual ficaria conhecida a
Revolução, se ao menos ela tivesse acontecido. Desconfio que nenhuma história
tenha uma revolução em seus livros que nem ao menos aconteceu. Desculpem-me.
Prometi não falar sobre esse assunto por demais debatido e pouco esclarecido.
Digamos apenas, que lamento não dormir sob o mesmo teto, em que divagou o jovem
falastrão. Talvez tenha me antipatizado com o nosso mártir maior, pelo simples
fato de ser mártir, entronizado salvador, e de salvadores barbudos o mundo está
cheio. Talvez compactue com Burton e considere nosso revolucionário um Speke
tagarela, Rompe Colione, como diriam os italianos. Alias, nosso alferes lembrava
o seu correlato piemontês, Pietro Micca, que explodiu os franceses no subsolo.
Os mártires se parecem em todos os lugares. Por isso não me peçam para adorá-los.
Sampaio se mostrou decepcionado com minha resoluta decisão de prosseguir
viagem, mesmo que a pé. Poupei aquele bom homem de minhas frustrações históricas
e culpei meu medo de assombrações, para evitar dormir naquela casa aonde as
paredes conspiravam. Diante a minha insistência em prosseguir, o velho negro
caminhou lentamente até o local aonde eu havia deixado minha montaria. Enquanto
me contava mais algumas estórias do lugar, que eu incompetentemente não
conseguia decifrar, circulava o animal, com gestos e algumas palavras grunhidas,
em uma espécie de benzedura. Quase que instantaneamente o cavalo se ergueu do
solo e mostrou-se apto a prosseguir até o fim dos dias, seja lá de quem seja,
meu ou dele.
Deixei para trás a Casa, agora rebatizada, do Sampaio, lamentando minha
incompetência em decifrar aquela língua que era a minha, mas que não
conseguia compreender na boca daquele homem. Como Burton tinha conseguido
entender aquele povo simples do interior mineiro, com seu linguajar veloz,
cortado e introspectivo? Realmente, por um instante, senti que “Minas são
muitas” como professara o sábio Guimarães. Senti-me humilhado por não
conseguir nem ao menos saber o nome daquele senhor que com sua lamuria, talvez
decorada na infância, deixou de pé meu cavalo moribundo. Incompetente em
retratar aquele povo. Mesmo Burton com seu estilo desconexo, e sendo inglês,
conseguira sintetizar o jeito daquela gente. Guimarães dissecara até o último
tecido cutâneo desse povo. E eu, nem ao menos entende-los conseguia.
Minha cabeça doía, mais pela carga de pensamentos, do que por qualquer disfunção
orgânica. A dor só era superada por outra, oriunda do pé direito. O membro
parecia querer estourar a bota que o continha. Não conseguia me lembrar aonde
havia acontecido àquela entorse. Talvez fosse culpa da própria bota, afinal, não
estava acostumado àquela vestimenta. A dor me lembrou da paixão de Burton por
botas.
Havia lido em sua pequena biografia que o capitão chegara a ter uma centena de
pares em sua coleção. Botas de todas as regiões do mundo e de vários estilos
e materiais. Não conseguia fazer uma analogia entre as botas e a historia
daquele homem. Tudo bem que um explorador, inexoravelmente, deve estar calçado
de uma boa bota, mas o nosso Burton não me parecia um perdulário a gastar
todas suas economias em uma coleção de botas. Seu caráter nômade não casava
com uma coleção regular e convenhamos, uma coleção desse porte ocuparia um
espaço imenso em qualquer bagagem de viagem. As botas deveriam ter alguma
conotação implícita em sua biografia. Mas de uma coisa me recordava agora,
enquanto meu pé latejava dentro da minha bota.
O jovem Burton com seus vinte anos de idade havia sido expulso do Trinnity
College, em Oxford. Essa passagem de sua vida é pouco comentada, pois
aparentemente não representa nenhuma importância em uma vida cheia de
aventuras e missões. Mas o que pouco se comenta, com certeza pode ocultar um
mistério, ou até mesmo uma patologia.
Ao ingressar no renomado colégio inglês, Burton vinha de uma adolescência
rica em experiências e liberdade. O Trinnity College seria a primeira instituição
regular na vida do jovem, educado por mentores pessoais e exclusivos. Com muito
custo, o Coronel Burton conseguiu convencer seu filho a trajar o tradicional
uniforme da escola. Mas o rebelde estudante conseguiu achar uma brecha na
rigorosa vestimenta. O calçado não era padronizado, cabendo ao aluno total
liberdade para escolher o estilo, desde que fosse totalmente preto.
No primeiro dia de aula, Burton adentrou a sede da escola secular com o
fardamento completo da instituição. Seu uniforme vermelho era o mais engomado
e polido da temporada. Mas não era o esmero no vinco da calça que chamava a
atenção de todos. Burton usava uma bota, rigorosamente preta, que engolia a
barra da calça até a altura dos joelhos. Atravessou o portão principal em
marcha rítmica, lançando as botas a altura do peito, formando um ângulo de
noventa graus em cada passada. Aquele calouro havia conquistado, para si, toda a
atenção dos veteranos, ávidos por uma vítima. O desfile do audacioso aluno
durou algumas dezenas de metros. Ao alcançar o prédio principal da escola,
teve seu caminho bloqueado por um sardento ruivo.
Burton sabia que o imperador Calígula havia ganhado este apelido devido ao fato
de usar pesadas botas durante sua infância. Secretamente era essa a brincadeira
imaginada por Burton, que planejava discursar no adro da universidade,
protestando contra aquele uniforme “ridículo”. Em seu discurso, elaborado
durante a insone madrugada anterior, iria citar Calígula, fazendo uma analogia
satírica entre o ditador sanguinário e a diretoria da instituição. Mas o
problema que não previra, era que o esquálido sardento ruivo que bloqueava
agora o seu caminho também conhecia a história do déspota romano.
- Aonde o Calígula, borra botas, pensa que vai? – Deixou escapar de seus
dentes irregulares o ruivo, já com a total ovação da turba que se formara ao
redor – Vejam como cai o império do pequeno César. – E terminando a frase
empurrou o peito de Burton contra um colega que já armara uma eficiente cama de
gato.
A queda do imperador só não foi mais dramática que a do Império romano.
Apesar, de não acreditar que o Império dos Cesares tenha ruído, simplesmente
se tornando o Sacro Império romano e posteriormente a Igreja Católica apostólica
romana. Fato que, eu sei, não interessa em nada nossa história. Voltemos então
a nossa narrativa, pois não quero delongar-me com mais uma polêmica acadêmica.
Não estou a redigir uma tese de pós-graduação e não sei porque insisto em
colocar essa analogia estúpida, entre a queda do rapaz de botas e o Império
antigo. Às vezes sou obrigado a concordar com Xico. Alguns escritores,
realmente, divagam por demais, sacrificando, desnecessariamente, dezenas de árvores
a mais.
Mas aquele ruivo fora mais audacioso que a horda de Alarico ou qualquer outro
povo bárbaro que intentou contra o império. A queda de Burton foi um golpe
mortal nas ambições do jovem acadêmico. No longo segundo, que se seguiu,
entre o empurrão e o solo, ele reviu todo seu projeto de conquistar e dominar
aquele território. Ele almejava no seu intimo fazer parte daquela fauna que
fingia desprezar. O Trinnity College seria seu debute no meio acadêmico e
representava o inicio de sua ambição de adquirir todo conhecimento do mundo.
Aquele ultraje, logo no primeiro dia de aula, não deveria ficar sem resposta.
Ao atingir o solo, a mão do jovem Burton apalpou um dos galhos, que abundavam
naquele inverno em Oxford. Em fração de segundos estava em guarda diante de
meia universidade. O desdenhoso ruivo não teve tempo de assimilar o pedido de
“An Gard” do desafiante esgrimista. A turba agitada fez cair em sua mão
direita, um graveto que se assemelhava a uma cimitarra turca. Sem esperar o
posicionamento adequado de seu adversário, Burton desferiu um golpe contra a
arma curvilínea de seu oponente. O ruivo, agora apavorado, tentou aplicar
alguma técnica em seu bailado defensivo. As botas, motivo da peleja, traçavam
marcas precisas no gramado impecável, revelando, para um bom observador, uma técnica
francesa apurada e eficiente.
O duelo durou bem menos que o desejado. Para frustração da platéia e do
mosqueteiro de botas, a espada do ruivo cedeu a uma estocada mais forte e
partiu-se ao meio. O fragmento resultante se projetou diretamente no olho
esquerdo do ruivo. Nesse dia Richard Francis Burton foi expulso do Trinnity
College e a Inglaterra ganhou um futuro chanceler caolho.
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Em tempo:
Para bem da verdade e da biografia do inglês, devo confessar que Burton foi
expulso do Trinity College por quebrar um violino (Legítimo Stradivarius) na
cabeça de um professor. Mas cá entre nós, uma luta de “espada” me parece
muito mais interessante! Vocês não acham?
- A versão é melhor que o fato!
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