CAPÍTULO OITAVO

Santos – Brasil 1865

“Mas o Brasil é uma nação jovem, extraordinariamente rica e de recursos ainda inexplorados.”

Richard Burton

                   

                    O navio acabara de atracar no porto de Santos. O movimento era típico do único porto importador do Brasil naquela época. O movimento intenso de escravos, na beira do cais, dava mostras de que a proibição, de adquirir novos negros africanos, não estava sendo cumprida. Ao fundo avistava-se a serra, quase uma cordilheira a beira mar.

                    Burton chegava ao seu exílio. Era assim que ele se sentia. Seus olhos selvagens, de fera enjaulada, demonstravam cansaço e submissão. O grosso cavanhaque escondia, razoavelmente, a cicatriz da bochecha. A proeminência abdominal era visível e o cabelo embranquecera recentemente.

                    - “Por meio destes hórridos perigos...” – sem sentir, como sempre, começa a recitar Camões.

                    Após dois anos de permanência na costa ocidental da África, como cônsul de Fernando Pó (atual Guiné Equatorial), aonde percorrera Dhaomé (atual Benin) e a Costa do Ouro (atual Gana), travando contato com os dirigentes locais, a fim de estabelecer contratos, sempre favoráveis para a Coroa inglesa; estava agora, ali, naquele porto fétido e desorganizado.

                    A missão “África Forever” fora um sucesso. Burton infiltrara-se, como um mero “explorador”, nas possessões francesas e nos reinos independentes, relatando, em minúcias, qualidade e localização de jazidas minerais. Chegara a simular uma amizade sincera com o monarca Gelele, de Dhaomé, que conquistara o poder com o apoio secreto dos ingleses, mas em breve o perderia para o imperialismo britânico. Apesar de não fazer parte da missão analisar essa questão, Burton ficou indignado com os recursos gastos, pela Coroa, para tentar manter o rígido controle do trafico negreiro. Centenas de súditos, da ilha que sempre chove, permaneciam ociosos, vigiando antigos portos negreiros, na suposta intenção de barrar o tráfico. Mas a poucos quilômetros, portos clandestinos fundados por um imigrante, negro e brasileiro de nascimento, despachavam a tétrica carga.

                    Mrs. V enviara novas diretrizes para a missão “Pedro e o lobo”. As novas instruções determinavam que o agente Sete deveria, além de suas antigas intenções, fazer levantamento apurado sobre a produção algodoeira brasileira. O algodão era, naquela época, o principal produto da Índia, que enviava toda sua produção para beneficiamento na Inglaterra, e recomprava, com ágio astronômico, o produto manufaturado. O freqüente incontentamento dos indianos fazia Mrs. V temer o futuro de sua galinha dos ovos de ouro. Com a Guerra Civil americana a exportação daquele país, a maior do mundo, também estava comprometida, tornando o mercado algodoeiro instável. Se a produção do algodão no Brasil fosse suficiente, certamente, a passividade quase homossexual daquele povo, nas palavras da rainha, tornaria o negócio mais rentável e, principalmente, seguro por muitas gerações.

                    As mensagens de Mrs. V, apesar de raras, chegavam as mão de Burton em horas inusitadas e de maneira surpreendente. No intuito de manter o sigilo da correspondência, Mrs. V não poupava o dinheiro do contribuinte e a criatividade de seus funcionários. Burton ao desembarcar no porto foi abordado por uma negra, de olhos azuis cristalinos, que interpretava, e mal, ser vendedora de flores. A moça, como Burton no passado, havia subestimado o poder do sol, e tinha a gola do vestido branco manchada pela fuligem da maquilagem. Alheia a ineficiência do seu disfarce, entregou ao “Lobo” uma tulipa negra, que fora de seu habitat adequado, sob aquele sol tropical, iria se autodestruir em poucos instantes. Dentro da flor rara, um bilhete curto em papel chinês, feito de arroz. O linguajar e a letra da Sra. V, às vezes, traziam Camões às lembranças de Burton:

                   007, somente para seus olhos

                    O rei não está nu

                    Olhar se o algodão da roupa do rei é puro

                    Qual o número do rei?

                    Onde o rei guarda sua roupa linda de algodão?

                    Pedro e o Lobo são, muito, muito amigos.

                    Faça o Pedro acreditar nisso

                    Conto contigo

                    de Sua querida Mrs. V.

                    Atenção:

                    Não se esqueça de comer arroz “.

                    Imediatamente, após ler a frase final do bilhete, Burton engoliu o pequeno papel. Dessa vez tinha gosto de fuligem.

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                    Já havia se passado um ano desde o desembarque em Santos. Isabel continuava jovem e bela. Fã incondicional do marido, relutava em aceitar a ruína física dele, e apesar de estar acostumada com a longa ausência do cônjuge, agora se irritava, pois ele se tornara quase uma visita na casa de São Paulo. Burton escolhera morar em Santos, no prédio do consulado, deixando Isabel por conta própria, em vários sentidos, na grande metrópole que aflorava. Isabel só via o marido, quando se resignava em empreender a longa jornada serra abaixo até o litoral. Burton alegava excesso de serviço como desculpa para permanecer em Santos, mas Isabel desconfiava da estória, pois o marido quase não ficava no consulado, desaparecendo, segundo sua governanta, por dias a fio, reaparecendo, sujo, cansado e deprimido.

                    Em todas as visitas, Isabel encontrava a mesa de Richard repleta de serviço burocrático por fazer. O consulado de Santos era o único autorizado no país, a tratar de assuntos relativos a exportação Brasil-Inglaterra. Isabel colocava toda a papelada em ordem, para alegria de muitos cafeicultores, que reclamavam das constantes demoras causadas pelo relapso comportamento de Mr. Burton. Freqüentemente, Isabel redigia, a partir das anotações hieroglíficas de seu marido, relatórios sobre os assuntos mais variados. “Estou atualmente ocupada com os relatórios para o Ministério. Tenho de copiar 32 páginas de um relatório sobre o algodão, 125 páginas de um relatório geográfico e 80 páginas de um relatório comercial” Escreveu mais tarde em sua autobiografia. Para as poucas pessoas com quem mantinham contato, Burton alegava que a mulher residia em São Paulo, por não ter se adaptado ao clima da cidade santista, quando na verdade, o clima litorâneo, era muito mais agradável à Isabel do que o empoeirado ar paulistano. Isabel descartava um afair extraconjugal, para tal atitude do marido, por saber que a ruína física dele ia muito além de um mero cansaço. Temia que seu esposo estivesse enlouquecendo com algum mal tropical. Santos, para Isabel, era muito mais interessante do que a fechada e provinciana São Paulo, dominada por uma “burguesia camponesa da pior espécie”. Na cidade portuária ela podia ver pessoas de todo o Mundo, que começavam a chegar ao “país das oportunidades”. Em São Paulo não conseguira fazer amizade, nem mesmo, com os compatriotas, muito menos com as “madames do café”.

                    Apesar de uma vida social intensa, aonde representava o casal, mesmo que in solo, não se sentia aceita pela sociedade local. Em Santos, tinha uma verdadeira e única amiga, com quem passava quase todo o tempo livre, quando em visita na cidade. Morando ao lado do consulado, a Marquesa de Santos tornara-se confidente e conselheira da Sra. Burton. Mais conselheira do que confidente, posto que, nada na vida daquela mulher era segredo. Amante do pai do atual imperador, ainda guardava traços de sua beleza e tinha uma postura de Lady, apesar do título de nobreza nestas terras tupiniquins, não representar sangue nobre. Passavam várias horas em dialogo apimentado, entre duas mulheres que estavam além do seu tempo. Nessas oportunidades, a marquesa mostrava a origem da nobreza brasileira. Acocorada, como se fosse descarregar o intestino, ficava pitando um cachimbo, ao lado do fogão de lenha da cozinha. No começo, Isabel achou desprezível aquela maneira de receber as visitas, mas depois, experimentando a posição, e o conteúdo do cachimbo, reconsiderou sua formalidade. Debaixo de uma nuvem espessa de fumaça, soltavam a imaginação e a língua, dominando todas as variedades de assunto. Isabel ia da euforia a tristeza em menos de um segundo. As queixas eram recebidas com conselhos e receitas caseiras. Essa terapia fazia a vida de Isabel suportável no Brasil. Burton poria um ovo se ouvisse o teor da prosa entre a amante imperial e sua recatada esposa. Apesar de não ser adepto das convenções, ele era intransigente em enunciar a desigualdade entre os sexos. Após o episódio no oriente médio, tornara-se um muçulmano não praticante, e sempre relembrava a Isabel, ironicamente, que não era ele que achava a mulher inferior, e sim Deus, que fizera questão de expressar isso em todas as religiões existentes. Com os Mórmons americanos aprendera a pregar a poligamia, pois à mulher cabia o dever de procriar e povoar o mundo. Isabel às vezes, perguntava-se se o marido, caso pudesse, não se tornaria, ele mesmo, um polígamo.

                    A Marquesa de Santos que, vez ou outra, ao pitar o cachimbo, mudava de voz e linguajar, crendo Isabel que para fazer troça, explicava o comportamento de Richard:

                    - Ih! Zi fin! Seu Homê é caboco de Oxossi... Uh! Hum! Guerrero dus bão... Má pá era moleza dele, Zi fin, deve era e galinha na incruziada, pra Pomba Gira... Uh! Hum!... e pedi prela dá seu homê de vorta. Isso é incosto que fizero prele sinhazinha. Mandinga da nossa terra negra. E Trabaio dus bão... Uh! Hum! ... Si num fizé u qui preto era manda, num vai ter marido de vortá, Sinhá. ... Agora sinhá si atenta qui era vai subi... Uh! Hum!... era e

                    Apesar de não entender nada, Isabel ria da suposta brincadeira da Marquesa, mas no seu intimo, ficava tentada a imolar uma ave em oferta para aquela tal de Pomba Gira.

                    “Mal não há de fazer.”  - pensava ela.

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