CAPÍTULO UM

Torquay – Inglaterra 1821

                    Marta agarrava-se a cabeceira da cama como um trabalhador ao seu martelo. Também eram de estivadores as imprecações oriundas daqueles lábios finos, quase inexistentes, emoldurados por uma palidez que destoava na brancura da camisola. Cada nova contração assemelhava aquela Lady, de família relativamente tradicional, a uma rameira do down side londrino.

                    Ninguém reconheceria aquela mulher; que requisitava, para si, uma gotícula de sangue Bourbon; com vocábulo tão vil e posição tão incomum para uma parturiente. Os braços cruzados sobre a cabeça tentavam trazer para si a trave principal da pesada cabeceira de madeira. As costas se erguiam e dançavam, ao ritmo das dores, em um bailado quase erótico. As pernas flexionadas se equilibravam, volta e meia, na ponta dos pés, colocando-a, ora como um iogue perfeito, ora estatelada na cama. Os braços sofriam as pausas dos gritos, marcados por dentes amarelados. Agora os insultos eram lançados a negra que torcia seus tornozelos, mantendo assim, com vigor, a exposição de suas partes. Maldizia aquela parteira cruel. Amaldiçoava também a Índia distante, por estar lhe dando de presente o menino Ganesh, o deus indiano com cabeça de elefante. Nos lampejos de dor arrependia-se de tanto sonhar com a exótica terra dos Marajás.

                    Mowba certamente não conhecia Ganesh, mas já vira, na infância rápida e distante na Costa do Ouro, filhotes de elefante dar menos trabalho para nascer. Aquele crânio que aflorava, peludo, como o púbis acima dele, realmente era descomunal. Para piorar a situação; vinha acompanhado de uma protuberância que complicava ainda mais o parto, mas que ao sair revelou tratar-se do cotovelo do bebê, que cismou em nascer em defesa da cabeçorra.

                    Quando os olhos da criança surgiram, a fenda expeliu o resto do corpo tal qual um projétil humano. Tamanha foi a velocidade do alívio de Marta Baker, que Mowba, mesmo experiente, no ofício de parir filho alheio, temeu que o rebento saísse em exploração pelo quarto.

                    Se iniciasse ali; naquele instante; a carreira que tanto sucesso daria ao nato feto no futuro; ele iria ver apenas um quarto simples em contraste com a opulência do casarão georgiano em que se encontrava. Teria apenas poucos metros a explorar entre aquela cama e uma penteadeira encostada no canto. Vislumbraria apenas o verde e seus motivos florais, do papel de parede já desbotado. Descobriria uma porta para o Mundo externo, que o levaria ao corredor, onde seu pai, o Tenente-Coronel Joseph Netterville Burton (posto que, Marta Baker era a senhora Burton) babava um charuto, indiferente à chegada do primogênito.

                    O coronel Burton, um irlandês com cara de irlandês, jamais sonhara com a Índia. Nem mesmo com Devonshire, condado em que se encontrava nesse momento, e que em dias frios como aquele, trazia à mente o fragmento italiano alojado em sua perna. Mancava sua ferida por onde a Coroa desejasse, sem sonhar ou formular planos, posto que, invariavelmente, esses sonhos e planos eram desfeitos por novas mudanças. Contemplando a baía de Tor, que se avistava da janela, relembrava as missões de uma vida. As ondas lembraram-no de que estava, na verdade, vivendo a meio soldo. Mesmo escoltando Reis covardes e medonhos para as terras do Cruzeiro do Sul; mesmo comandando a cavalaria em carga no continente; e mesmo se matando no marasmo de batalhões inertes e indisciplinados de algum condado remoto; o exército achara por bem afastá-lo. O Sr. Burton puxou uma baforada longa naquele novo vício trazido dos trópicos. O cheiro de fumaça misturou-se ao de algum outro proveniente do quarto. O som de seus pensamentos emaranhou-se ao de um choro forte e desprovido de nota. Já não mais se preocupava.

                    O nauseante misto de odores que impregnava o ar trouxe todos de volta de seus pensamentos. A Sra. Burton, porém, que suava sobre caro perfume, anestesiada agora pelo alívio, sonhava ser Parvati a discutir com seu marido Vishnu, por ter este arrancado a cabeça de seu filho curioso, obrigando-a a buscar entre a fauna oriental uma substituta à altura. Curiosidade! Será que o prêmio para tal crime é ter a cabeça arrancada e reposta em seguida? Reposta...Resposta. A Sra. Burton estava delirando sobre qual a mensagem deveria ser extraída, daquela lenda sobre a criação do deus indiano, quando o choro de seu filho a trouxe de volta ao leito.

                    O jovem ser não poderia estar tendo pensamentos felizes, posto que chorava a plenos pulmões, como se: além de descomunal cefálio, fosse também dotado de trombas ruidosas. O líquido, que durante tanto tempo lhe dera conforto, secava agora em contato com o suor fétido e ardido daquela figura negra que lhe amparava. Suas mãos, agilmente, começaram a explorar o decote da veste surrada de seu cárcere.

                    Instintivamente Mowba cedeu os seios flácidos ao glutão, que sorveu e agarrou aquela nova descoberta; quantas em apenas um instante. Instantaneamente o seio lactou e aquela mulher teve um prazer negado por tantas vezes. No mesmo momento em que os dutos da Sra. Burton secavam, levando junto os seus escassos encantos.

                    Mowba comprimia o pequenino desproporcional de encontro ao seu corpo, como se pudesse introduzi-lo em seu ser e tirá-lo de lá novamente. O frescor dos trópicos soprou, corando-lhe a face, purificando seu suor e enrijecendo-lhe os seios. Encontrava-se agora na beira do cais da cidade do Rio de Janeiro e no seu colo estava o único rebento que os abusos, sofridos na escravidão, não ceifaram, mas a viagem àquela ilha nebulosa faria o mister de levar. A alforria e a segurança de trabalhar para pessoas justas e caridosas custaram a saúde e a morte prematura de seu pequeno Lusa. Sepultado n’água, em algum lugar entre a costa brasileira e aquela ilha chuvosa. Era sua esperança secreta que o corpo de Lusa nadasse até a África, e encontrasse o lar Nagô dos antepassados, apesar dela desconhecer a estrutura geográfica do Mundo e saber que mortos não nadam.

                    Um olhar cúmplice do bebê em seus braços, acompanhado de um leve arranhar de dedos, tiraram Mowba das lembranças tristes. Ela analisou aquela cabeça, maior que seus seios, e mesmo assim viu beleza naquela criança. Viu mais. Viu um brilho no olhar curioso do garoto, um olhar de uma fera enjaulada, com um desejo que aflorava da sua pele alva e lisa. Mowba não conteve um grito alegre entre os dentes apodrecidos, que inundou de português o recinto:

                    - Esse é filho de Oxossi.

                    Aquelas palavras exóticas, a qualquer ouvido anglo-saxão, não preocuparam a Sra. Burton que tinha plena convicção: uma criatura, que lhe auxiliara a ficar livre, daquela outra criatura, seria incapaz de desejar qualquer mal ao seu filho. Quando a negra, que serviu no Brasil, na corte do rei fujão português, começou a entoar uma cantiga em língua desconhecida, a Sra. Burton entregou-se a Febo com a certeza de ouvir uma prece.

                    Mowba cantava uma cantiga de ninar que aprendera nas terras embrionárias do distante Brasil. Ela pouco sabia dos seus pais ou avôs. Nem ao menos sabia se tinha direito a esse privilégio branco, mas essa era a única herança dos tempos, em que ainda formosa, dividiu a mesma senzala com anciões, em uma terra, que mesmo não sabendo a certa localização, lembrava com admiração. Cantava a ladainha aprendida ao redor do fogo, que narrava a estória de um Rei Negro que viveu nas terras altas das Minas dos Cataguases. Um Rei incomum em uma pátria que coroava os pardos com açoite e morte.

                    Abusando da sua recém descoberta audição, o jovem Burton sugava o banquete africano enquanto gravava no subconsciente a doce melodia. Ainda havia espaço, na sua incrível capacidade de memorização, de lembrar-se dos sonhos uterinos compartilhados com a mãe. Via Ganesh flagrando o coito entre Pavarti e Vishnu, visão que lhe rendera o prêmio elefântico. Imagens herdadas do ventre materno, mas musicadas por uma cantiga em língua estranha que destacava o refrão que falava nas “minas de Chico Rei”. O jovenzinho já podia quase repetir a canção, tamanha era sua capacidade nata de reproduzir sons e sotaques. A composição também tinha um meloso “nananene” que nada significava para o recém nascido, mas que a contra gosto fazia pesar suas pálpebras. No sonho, que agora chegava, deixava de ser um projeto, que era, e via-se explorando florestas, desertos, cavernas e rios. Confrontava-se agora, com o próprio deus menino Ganesh, não para destruí-lo, mas para entende-lo, para confortá-lo; pois era a divindade indiana da sabedoria, que distribuía o conhecimento aos homens. E ele já se sentia homem feito, pronto a receber as dádivas da curiosidade: a descoberta.

                    Nove meses preso em um limitado mundo custou-lhe a paciência. Tinha pressa. Vencido aquele primeiro desafio de sair de uma caverna escura e úmida, tinha pressa de nascer. Tinha pressa de crescer, de ver, perguntar e descobrir. Nascia ali o explorador determinado de quatro continentes, antropólogo, naturalista, folclorista e caçador de aventuras, que mais tarde seria intitulado: Sir Richard Francis Burton.

 

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