CAPÍTULO DOIS
Meca – Arábia
Saudita 1231
O Sol tentava colaborar para destruir seu disfarce. Já completava a décima
quarta volta ao redor do prédio e ainda não havia conseguido aproximar-se da
Caaba. Seu temor crescia, pois o esforço físico, o sol escaldante e a aglomeração
de peregrinos estavam aumentado a sudorese que poria em risco o falso tom ocre
de seu rosto.
Era o ano de 1231 da hégira do profeta, mas era também o ano da graça de 1853
do nosso senhor Jesus Cristo. Mas naquele momento ele seguia o calendário islâmico,
tamanha era a perfeição com que vivia seu personagem. Desde que deixara o
Egito embrenhado entre os
Quando algum vizinho de rota circular lançava qualquer olhar mais apurado para
sua figura, entoava imediatamente um sonoro:
- Allah Akbar!
Professava que Deus era grande com energia redobrada, confiante em sua
capacidade de imitar sotaques e falar idiomas como se nativo fosse. Assim tinha
sido nas viagens juvenis pela França e Itália e assim era como oficial no rincão
indiano, aonde por diversas vezes usou seu dom em proveito próprio e do exército
britânico da Companhia das Índias Orientais.
Enquanto sua mente, por debaixo do turbante, viajava pelas lembranças, duas
voltas a mais já o faziam ler nitidamente os bordados dourados da colcha negra,
o
Conta-se que, quando Abraão vagava pelos desertos do
Esta fonte era o poço de Zem zem, que há poucos minutos atrás tinha saciado a
sede dos dervixes, que agora praticavam o
Sete vezes sete eram as voltas que nosso falso devoto já havia efetuado. Temia
chamar atenção de algum
Caminhando agora colado às paredes da Caaba, só era interrompido por um ou
outro peregrino grudado ao
Enquanto sua “mão pura” tentava não se despregar da parede, em um deslizar
de dedos, ora sobre a pedra, ora sobre o brocado negro, a outra apertava, por
debaixo do
Formulando o ataque final, não pôde deixar de relembrar, rapidamente, toda
história daquele lugar. Ali, Abraão abandonara sua amante Agar, a pedido de
sua esposa Sara, para que ela morresse junto com seu filho “bastardo”
Ismael. Mas o arcanjo contrariou o desejo do patriarca da humanidade. O poço
Zem Zem floresceu e com ele um entreposto entre as rotas para o Oriente, que deu
lugar a uma cidade. Após Abraão, uma tribo denominada Koraichitas dominou o
culto, altamente lucrativo, no pátio da Caaba, que chegou a abrigar 365
estatuetas de veneração, entre elas a de Moises, Vênus, Cristo, Virgem Maria
e também de vários animais, tamanho era o afluxo de beduínos e a diversidade
de crenças na região. A Caaba era reverenciada, mas como um templo pagão. A
principal divindade local era
Para nosso falso peregrino aquela pedra, agora incrustada na parede, era apenas
um meteorito caído, possivelmente, composto de minerais rochosos e partículas
de ferro. Nenhuma ou pouca emoção causava a ele, a sorte de Abraão, seus
filhos e seguidores. Em toda aquela história rememorada, a única parte que
merecia destaque era o litígio entre xiitas e sunitas, que no ano de 683 d.C.,
ou seja, no ano 61 da era islâmica, travaram uma batalha que resultou no ataque
a Caaba, fato que criou uma pequena fissura na pedra sagrada..
Naquele instante a pedra passou diante seus olhos, e era como se ela realmente
se movesse, enquanto todos permaneciam estáticos. O único inglês de turbante,
ali presente, lançou-se sobre a pedra não sem antes cometer alguns sacrilégios
à religião, entre eles, o de andar no sentido contrário ao fluxo que o
arrastava. Sorte sua que nenhum Mullah o repreendeu, o que, junto com seu rosto
desbotante, resultaria em mortal castigo. Na rota de encontro à pedra,
literalmente passou por cima de um velho, chamando a atenção da horda para si.
Quando pousou a mão sobre a rocha negra sentiu um alívio, não pela transferência
de pecados, mas pela sensação de pioneirismo incrustada naquele gesto.
Encostou a testa frondosa no meteorito e simulou uma prece sentida, enquanto o
grupo, que irritara a pouco, afastava-se como uma maré. Tinha de ser rápido,
pois não queria estar ali quando aquela onda hostil retornasse. Evitou encostar
os lábios na rocha, que brilhava de saliva alheia. Aquela região era epidêmica
de cólera e peste. Encostando todo o corpo na parede, correu a adaga oculta até
a altura do pescoço, e com a velocidade de um prestidigitador, atacou a rocha
bem na altura da fenda provocada por Abd Al-Malik no ataque de 61 D.M. (Depois
de Maomé). O golpe certeiro esgotou toda a força que lhe restava. Do ricochete
da lâmina na pedra surgiu um pequeno fragmento de rocha, que caiu ao solo. Por
milagre nenhuma das centenas de almas devotas, ao seu redor, percebeu a tamanha
blasfêmia praticada. O falso peregrino lançou-se ao solo de encontro ao
pedregulho, que agora, além de preto, revelava uma face reluzente. Os passantes
desviavam, como podiam, daquele corpo ao chão, pois não era comum praticar o
As mãos cegas tateavam entre a floresta de pés e sandálias. Não foram poucos
os pisões sobre os dedos, em vários diapasões de força, como se todos os
calcanhares do mundo quisessem impedir aquele sacrilégio. Prostrado, mas em
profanação, alcançou a pedra. No momento em que encerrou a pedra em sua mão
direita, uma pressão foi exercida em seu ombro esquerdo. A pressão lhe ergueu
do solo. Ao ressurgir do meio da multidão, o velho que havia derrubado na volta
anterior o aguardava com um:
- Allah Akbar!
Richard Burton viu-se refletido no olhar daquele homem e percebeu que seu
disfarce não o convencia. Com o pó cosmético barato a escorrer pelo rosto, já
podia ouvir os gritos de “cão infiel” e todas as adagas dilacerando seu
disfarce. O velho pressionou ainda mais a mão sobre o ombro do inglês e de
dentro de sua barba repetiu:
- Deus é Grande - e empurrando sua presa de encontro ao mar humano completou
–... E assim está escrito... Segue o caminho.
Burton moveu-se em diagonal, fazendo o menor curso possível entra a Caaba e a
borda do pátio, não sem antes lançar um último olhar ao velho peregrino, que
comprimia os olhos úmidos, como se nunca mais fosse abri-los, enquanto repetia
uma prece, como se a recriminar seu ato infame de ajudar um infiel.
Protegido pelos arcos que circundam o pátio da mesquita, Burton se juntou à
leva de caminhantes que faziam o Say, ato de percorrer sete vezes os antigos
locais de culto, do pórtico de
”Posso dizer com toda a verdade que de todos os crentes que em pranto vêm
agarrar-se a cortina ou que apóiam os seus corações que palpitam de encontro
à pedra, nenhum terá alguma vez sentido por um momento sequer maior emoção
do que a do
Burton caminhou sempre, como se fosse capaz de alcançar o Mar Vermelho a pé.
Somente depois de sentir, que já estava seguramente longe da Meca, e de
qualquer outro ser humano, teve a coragem de olhar para sua prenda. Ao abrir
lentamente a mão, pôde ver sete centímetros de rocha desbotada, agora em tom
acinzentado, quase branco.
Percebeu então, que sua palma estava manchada de negro.
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O sol já vencera o primeiro “round”, tornando o disfarce uma mera lembrança.
A boca ressequida rachava sob a inclemência do astro real. As pernas seguiam,
fixando-se em ângulos mais demorados e menos obtusos. A mão da pedra quase roçava
o solo, assemelhando aquele “peregrino” a um orangotango de cabeça
privilegiada.
Perdido. Talvez, não só pelo caminho, mas em eterna perdição.
“Segue o caminho!”. Ecoavam as palavras do velho Sufi. “Qual caminho?”.
Tentava responder outro eco dentro da mente de Burton.
Aquele caminho, no qual se perdia agora, poderia ser o mesmo que trilhou Caim em
fuga; ou mesmo o filho diletante de Noé, a caminho para povoar o continente
negro. Poderia ainda ser o caminho do Êxodo de Moises, e a mente de Burton
brincava com a idéia de transpor o Mar Vermelho com um simples gesto. Mas a
pedra retornava-o racional e o caminhante concordava que aquele caminho no máximo
seria uma rota de retorno de um Marco Pólo qualquer. Com tantas opções:
realmente estava perdido.
Ao fugir da Meca perdera não só o caminho linear e próximo, para o Oeste, até
Jidá, aonde embarcaria para o Egito. Perdera também o senso, o juízo e toda
forma coerente de raciocínio. Uma força sobre-humana o fazia caminhar sempre
para o norte.
Embrenhava-se nas montanhas e desertos do Hijaz. Já se via apedrejando demônios
e as miragens traziam anjos ao seu encontro. Mas eram serafins sarcásticos que
lançavam pedras no rosto daquele demônio transfigurado em gente. A tempestade
de areia vencia as forças de Burton, que agora cedia lentamente o joelho ao
solo, dando em seguida, com maior ímpeto e força, a face avermelhada.
A areia começava a encobrir o corpo do “hajj ocidental”, mas para a cabeça
seria necessário maior vigor da tempestade. Burton não conseguia recordar sua
fé anglicana e abandonara por completo a crença no profeta Moises. Seus olhos
semi-cerrados vislumbravam ao longe uma grande montanha, mas não se tratava do
Monte Sinai bíblico, mas sim, a montanha de um outro velho. A montanha
aproximava-se com prodigiosa velocidade e o pequeno deserto ao seu redor
transformava-se em um vale de palácios majestosos e pomares fecundos. Três
rios caudalosos desciam do alto monte, em canais retos e paralelos. O primeiro
era límpido e translúcido como a mais pura das águas. O outro sanguinolento
como o mais perfeito vinho O último corria lento, amarelo e viscoso como mel.
Burton agora era cercado por uma legião de beldades que tocavam instrumentos
variados, dançavam e cantavam em um exclusivo espetáculo.
O inglês aguardava a intromissão do velho Hassan-i, mestre dos hashishin, que
retornaria do túmulo para entregar-lhe a conta daquele faustoso banquete.
Hassan-i Sabbah fundara no século XI a seita secreta dos assassinos, que viviam
uma vida de prazeres comparáveis ao paraíso islâmico, mas em troca eram
obrigados a matar quando convocados. Burton ponderava sobre a oferta. As
montanhas, os manás, as damas, e também o sol eram eclipsados por um vulto
negro que trouxe a Burton a lembrança da pedra em suas mãos. Ou seria a pedra
que trazia a lembrança daquele vulto negro? Comprimiu o pedregulho entre os
dedos e tentou esconder o rosto na areia escaldante. Sentiu a elevação de sua
cabeça e mesmo com os olhos fechados pode ver o clarão do sol a queimar suas
pupilas. Uma mão amparava seu pescoço, no exato instante em que um frio metal
tocou seus lábios ressecados. A inundação, a principio, causou uma dor
lacerante no céu da boca seco. A dor deu lugar a um alivio revigorante, mas não
conseguiu distinguir o sabor do líquido.
Burton começou a crer que poderia ser um vinho drogado com haxixe e que Hasan-i
Sabbah estaria oferecendo-lhe aquela dádiva para leva-lo aos jardins das
delicias, onde o menor capricho humano seria satisfeito. O sono chegava e Burton
cedia àquela seita secreta seus melhores agradecimentos. Conformava-se em matar
em nome daquele mestre salvador, possivelmente agora representado por um
descendente direto, ou talvez, pela “tribo perdida dos cruzados”. Tribo
formada por descendentes de desertores templários que teriam adotado as práticas
islâmicas e cultuavam os preceitos de Hassan em pleno século XIX. Burton
sentia que seu corpo movia-se apesar de imóvel. Ouvia vozes e quando o sol
permitia abrir rapidamente as pálpebras, admirava uma cabeça animalesca que o
ameaçava devorar, tal qual uma esfinge faminta.
“Decifra-me ou devoro-te”... A mente de Burton tentava revelar aquele
enigma, apesar de perdida em divagações. Acreditava que o haxixe estivesse a
turvar seus pensamentos lógicos.
Nova espiadela e via agora uma seqüência de montes alinhados em fila indiana.
O alinhamento movia-se serpenteando a areia reluzente. Burton entregou-se
definitivo ao sono.
A caravana de Mirza Muhamed Ali seguia com sua enfileirada tropa de camelos, ou
melhor, dromedários, com suas corcovas únicas. O comerciante muçulmano
considerou um milagre de Alá encontrar com vida aquele “peregrino” perdido.
Após ministrar-lhe o precioso elixir daquela região: a água; aplicou
emplastros nas queimaduras que assolavam a pele, outrora pálida, daquele homem
do norte. Com muito sacrifício Mirza conseguiu extrair uma pedra branca
incrustada na mão negra do “hajj”. Improvisou um pequeno colar para o
pingente e condecorou aquele moribundo estranho. Burton, mesmo dormindo um sono
profundo, pareceu esboçar um sorriso agradecido ao sentir o retorno do contato
de sua prenda.
Liderando o séqüito, Mirza agora conjeturava se aquele infiel merecia a água
dos próximos sete dias de viagem até o Cairo. Após curta oração solucionou
a equação, extraindo uma raiz única, como a corcova de sua montaria. “Ala
escreveu isso para mim. Devo salvar o infiel e converté-lo, apresentando-lhe a
verdade do Corão. Assim está escrito”.
A comitiva seguia rumo ao Cairo. Cada membro perdido em suas particularidades e
anseios, enquanto Burton flutuava, riscando o caminho, em sua liteira
improvisada, atrelado à traseira de um dromedário. Sua mente já previa os próximos
dias de recuperação e zelosa conversão aos ensinamentos de seu novo mentor.
Burton voltará à Inglaterra com um pedaço da pedra e outro da fé de Maomé.
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