CAPÍTULO 30

Sabará – Brasil – 1867

                    - Uai? Como assim uai? O sinhô me adisculpá, má num to intendendo o sinhô não. O sinhô é dus estrangero?

                    Burton tinha se confundido e misturado duas línguas ao mesmo tempo. Fato raro em sua mente tão controlada. Realmente já não era mais o homem que fôra um dia. Na sua constante ânsia de saber, uma das palavras mais recorrentes em seu vocabulário era o “Por que”. Mas não soube explicar por que havia dirigido uma indagação aquele cabloco, de beira de estrada, na língua natal.

                    - Why? – perguntou novamente ao pobre caipira o por que ele não queria explica-lo aonde ia dar aquela estrada. – Why senhor, por que não me responde para onde vai este caminho e se falta muito para chegar em Sabará?

                    - AAAAh! Uai então qué dizé purque! Ah intendi sô! Uai purque uai uai! Essa estrada num vai pra lugar nium e fica ai mesmo sempre no mesmo lugá. E pra Sabará falta só um tiquinho atoa de tempo. Coisinha de nada. È logo ali. E só segui esse caminho mermô qui o sinhô ta encima dele.

                    Burton maldisse os cognatos tão comuns em várias línguas, mas jamais suspeitava que estava a criar, naquele instante, uma expressão idiomática tão característica naquela gente, que ficaria como marca registrada de um povo. Alguns exaustivos quilômetros depois, também maldisse a mania daquela gente de considerar tudo próximo, mesmo as distâncias mais longas como aquela. Sabará surgiu por entre as montanhas quase como uma “paisagem suíça. O primeiro plano é a verde planície, com uma nobre árvore solitária. O rio curva-se para a direita numa curva graciosa, exibindo a colina em que se assenta a parte alta da cidade, cujos numerosos campanários atestavam o orgulho a piedade da antiga população. Atrás dela a imensa serra da Piedade curva-se para encontrar a do Curral. Nos morros mais próximos, manchas de jacutinga demonstram que ainda há fundição de ferro na região. Bem ao alto, à direita, fica a cena tão comum em Minas: o grande cruzeiro negro com os complementos, em frente a uma pequena capela branca alvo de romarias. Esse morro da Cruz tem exatamente 858 metros acima do nível do mar.” Pelo menos assim descreveria em seu diário mais tarde.

                    Burton adentrou a cidade pela grande ponte velha, se dirigindo diretamente para a Rua das bananeiras, onde Dona Maria dos Prazeres o aguardava ansiosa por hospedar ilustres visitantes. Desembarcada toda a carga o casal Burton saiu em um rápido city tour pela pequena cidade. Subiram até o Largo do Rosário onde observaram uma construção inacabada que revelava todo o processo de construção de uma igreja barroca. Burton não demonstrou nenhum interesse pela rudimentar engenharia aplicada. O guia improvisado, o Major Brochado, contou que aquela igreja estava sendo construída para os escravos da região, com ouro entregue por eles próprios. Um privilegio não compreendido pelo casal inglês.

                    Em Ouro Preto Burton tinha tomado conhecimento da história do escravo negro que chegara a comprar sua própria mina de ouro, adquirindo, segundo a lenda, alforria para vários escravos. O nome do escravo soava bastante familiar para Burton, mas ele creditava essa familiaridade ao nome de seu criado esperto: Chico. A mente brilhante de Burton não seria capaz de ligar o nome de Chico Rei as cantigas aprendidas na tenra infância, nos braços negros de Mowba.

                    Na noite daquele primeiro dia em solo sabarense foram assistir a uma peça no “tolerável teatro” local, onde amadores esforçados encenaram plágios de clássicos europeus adaptados para a realidade nacional. A peça principal era “Romildo e Jussara” que contava a insossa estória de dois jovens apaixonados membros das famílias rivais Viana e Silva. O fim trágico do casal levou a Sra. Burton as lagrimas. A segunda apresentação contava a estória de um jovem atormentado pelo fantasma do pai, que rogava vingança por sua morte. Quando o péssimo protagonista declarou que havia “alguma coisa de podre no reino de Sabará”, Burton convenceu a esposa a não esperar o fechar das cortinas. Após o teatro foram recebidos em um grande jantar oferecido pelo Major e a sociedade local.

                    A Sra. Burton assumiu uma das cabeceiras da mesa deixando a restante para o marido. O serviço era para vinte e cinco pessoas sendo dezessete brasileiros e oito estrangeiros. Dos estrangeiros, além dos Burtons faziam parte da mesa um falante comerciante português chamado Manuel Pereira de Melo Viana, vulgo Piaba, que se ofereceu para fornecer o equipamento para nova empreitada de Richard: descer o Rio das Índias Velhas até o Rio São Francisco.

                    Burton pretendia encerar suas aventuras pelo Brasil com uma viagem fluvial pelo rio que considerava um verdadeiro Mississipi brasileiro. Para isso não contaria com a presença de Isabel que achava por demais arriscado navegar por aquelas águas enjoativas.

                    A noite regada a vinho do porto, cerveja e quitandas mineiras, teve como tema principal as recomendações dos convivas.

                    - Recomendo que o senhor não beba a água do rio – receitou o Sr. Gordon que acompanhara Burton até Sabará depois de sua visita a Mina de Morro Velho. – A cólera já desmantelou muitas incursões por essa região.

                    - O amigo deve tomar cuidado redobrado com os indígenas se resolver se enveredar mais para o Oeste selvagem – exagerou o Major Brochado – Ainda temos tribos antropofágicas por essa terra.

                    - O senhor está levando agasalho? – perguntou Miss Dundas sem muito assunto e lançando olhares lascivos ao interrogado – Deve fazer muito frio à noite e já que vossa esposa não irá acompanhá-lo...

                    - Richard é um experiente explorador e podem estar seguros que todas as medidas serão adotadas. – cortou a Sra. Burton rechaçando o ataque da pretensa adversária – Ele não é homem de se arriscar em aventuras tolas. Ele sempre tem um objetivo em mente e priva pela segurança.

                    - Realmente, só necessito de um barco resistente e uma pequena tripulação que conheça pelo menos a parte inicial do percurso. O trecho já é navegado pela barca Jaguará que traz madeira para a mina de Mr. Gordon. Não vejo nenhuma dificuldade em transpor o percurso com toda segurança e chegar à junção dos dois rios, desembarcando em Guaicuí. – narrou Burton – O Sr. Viana já se prontificou a fornecer todo o equipamento necessário inclusive a balsa...

                    - Material da mais alta qualidade posso lhe garantir, My Lorde. – pregoou aos berros o comerciante português – E não pagará nem um vintém a mais por isso. Meus serviços são grátis, pagando apenas o justo preço pelo equipamento.

                    - Gostaria de saber se o cavalheiro não me poderia levar um peso morto em sua viagem – indagou um homenzarrão de quase dois metros que atendia pelo nome de Mr. Hock – sendo eu mesmo esse estorvo. Vim de São Paulo entregar alguns trabalhadores ao caro Sr. Viana e considero mais aprazível retornar navegando e embarcar em Salvador, em algum navio para América nortista.

                    - São trabalhadores legítimos, posso garantir – esclareceu o Sr. Viana sem convicção – Vinte espécimes alforriados e livres para partir a hora que bem entender.

                    - Se o Capitão Burton for abrir exceção ao americano, candidato-me a passageiro também – ofereceu-se o mulato Antônio Casimiro Pinto, vulgo Onça – tenho um trabalho a realizar na festa da padroeira de Januária. Se o amigo não se importar de carregar alguns pequenos fogos pirotécnicos, é claro.

                    - Pelo visto irá fundar a primeira linha regular de passageiros entre Sabará e o porto de Manga, Sr. Burton. – calculou o Major Brochado - Poderia até mesmo se estabelecer nessa função possivelmente rentável.

                    - Acredito no potencial comercial dessa via. – professou com ar de visionário o Capitão Burton – No próximo século esse rio será a grande mola de integração dessa grande nação. O Jovem Chico, assim como, o nosso velho conhecido Amazonas é uma estrada natural que não requer grandes gastos em manutenção. Todo o escoamento da produção nacional será efetuado pela sua grande e navegável bacia hidrográfica. È simplesmente uma questão de ter olhos para ver. Qualquer idiota será capaz de ver isso no futuro.

                        - Vamos então brindar ao futuro desse Rio que partindo de Sabará irá alcançar o Atlântico lá pelas cercanias de Alagoas. – ergueu o copo o Sr. Onça, que justificava o apelido com seus grandes olhos embriagados – Um brinde ao grande Capitão Burton. Um brinde ao Rio Chico.

                    Todos tentaram quebrar seus copos em um choque sincronizado e barulhento. Não obtendo sucesso na tentativa, todos viraram, de uma só vez, o Porto falsificado fornecido pelo empório do português.

                    - Que Porto magnífico! – disse o português Manuel Viana, único com coragem para dizer tamanha mentira – Espero que My Captain encontre portos com a mesma qualidade pelo caminho. Save the Queen! Save The Captain! Save the River Chico!

                    Burton bochechava a beberagem rançosa tentando encontrar algum vestígio de buquê. Ouvia paralisado, todos repetindo os vivas, à rainha, a ele e ao Rio São Francisco, agora rebatizado simplesmente de Chico.

                    - Chico, sempre Chico – Pensou em voz alta, quase gritada.

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                    “Quarta-feira, 7 de agosto de 1867. Dirigimo-nos para o porto da Ponte Grande onde jazia a balsa. Nunca vi coisa mais parecida com a arca de Noé. O toldo estendido, parecendo um “pál” cigano flutuante, tinha uns sete pés de altura e vinte e dois de comprimento, ficava esticado como uma tenda por meio de dois esteios. Para que essa coisa chegue a salvamento será preciso que o rio seja realmente de segurança.” Escreveria mais tarde Burton em seu diário de bordo.

                    Todas as pessoas importantes da cidade foram assistir a cerimônia do embarque. A Srta. Dundas quebrou no casco frágil da embarcação, uma legitima champanhe nacional, fornecida pelo Empório Viana & Filhos, com rotulo de procedência francesa. Burton temeu que o choque da garrafa, que só se rompeu na sétima tentativa, contra a aroeira suspeita provocasse uma ruptura na estrutura da balsa. Seus temores foram afastados por golpes que ele mesmo recebia no cérebro..

                    - What is this? – disse sem tradução o inglês, ao perceber que vários chinelos iam de encontro a sua cabeça. Os agressores não tinham dificuldades em acertar o cefálio britânico.

                - Não se preocupe, My dear, essa é apenas uma demonstração local de boa fortuna – disse o Sr. Viana, que além de exímio espoliador comercial, conhecia a língua dos anglo-americanos – O costume local reza que o viajante que desce rio abaixo deve ser alvejado com chinelos. Quanto mais acerto, maior será a chance de sucesso da jornada. Vejo que o senhor está com Good Luck , pois nenhum chinelo errou seu alvo.

                    Burton agradeceu enquanto restabelecia o penteado, desgrenhado pelos projeteis fétidos. Temeu pela sorte dos demais tripulantes, posto que fora o único alvo de todos os presentes. O Piloto Vieira e seus dois filhos, assim como, os dois passageiros oferecidos, não receberam uma única chinelada na cabeça. Burton desconfiou da veracidade daquela tradição local.

                    Isabel, Chico e vários dos convivas da noite anterior, embarcaram na balsa para acompanhar Burton até a aldeia de Santo Antonio das Roças Grandes. Quando a tripulação excedente invadiu a jangada, o piloto Vieira temeu que o naufrágio fosse iminente. A balsa afundou três palmos inundando a plataforma da embarcação. Os eufóricos excursionistas, alheios ao perigo, entoavam vivas e deixavam o piloto ainda mais tenso, com seus pulos e movimentos exagerados. Com muito jeito e perícia a balsa singrou os dois quilômetros até a pequena aldeia do santo casamenteiro.

                    Os “clandestinos” foram desembarcados e a tripulação restante seguiu viagem desaparecendo na primeira curva a direita. Isabel conseguiu lançar um último olhar no marido, que se postara na proa do navio, tal qual um almirante Nelson a contemplar o infinito horizonte. Burton não retribui nenhum olhar da esposa. Seguia determinado nos seus pensamentos de desbravar uma nova fronteira. Se tivesse lançado um único olhar para a margem teria visto, emoldurados pela igreja de Santo Antônio, os cidadãos ilustres de Sabará escoltando sua bela esposa, sempre acompanhada do fiel criado Chico.

                    Chico estava em casa, sua terra natal. Conhecia aquela vila como ninguém desde que nascera, próximo aquela pequena igreja. Amparava sua patroa que não vertia nenhuma lágrima ou manifestação de tristeza.

                    Isabel apenas se magoara com o nome da embarcação que deixava seu ultimo vestígio na curva do rio. As letras amarelas pintadas pela tinta rala, fornecida pelo empório português, revelavam o nome de Brig Elisa. A Sra. Burton não entendia por que o marido havia negligenciado seu nome, e batizado a nave com aquela, até então, desconhecida. Rebuscou no fundo da mente uma Elisa no passado de seu marido, mas em vão. Mal sabia ela que Brig Elisa era um anagrama de Isabel, maneira encontrada por Burton de homenagear sua amada esposa, mesmo estando com vontade de magoá-la.

                    Assim que a balsa, que fazia água por todos os lados e apresentava péssima navegação, sumiu por completo da vista de Isabel, uma lágrima rolou na face daquela mulher. Ela estava prevendo que só tornaria a rever seu admirado marido, após longos meses. Mal sabia que seriam alguns anos e somente em solo inglês. Os enjôos, motivo de sua ausência naquela balsa, vinham como as batidas dos campanários locais, anunciando a chegada de uma nova hora. Mas agora, as náuseas, que a acompanhavam há alguns dias, vinham precedidas de um soco seco e forte, como se algum animal enjaulado quisesse sair de dentro de suas entranhas.

 

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