CAPÍTULO 31
Cruzília – Brasil – 2003
A febre abrandou, mas as dores pelo corpo são várias. È difícil dizer aonde
não dói. Retomo a Estrada Real e sigo relatando as aventuras do Capitão
Burton, que após deixar sua esposa em solo sabarense seguiu descendo o Rio das
Três Velhas Índias até o porto de Manga no norte de Minas. Após desembarcar,
o inglês seguiu, via terrestre, até a cidade de Salvador. De lá tomou um
vapor até a cidade santista, onde não encontrou sua esposa que já havia
retornado a Londres. Havia se passado cinco meses.
Reencontrei a Estrada Real em Minduri, onde também encontrei uma Turma de
tropeiros, residentes em Cruzília, que gentilmente me acompanharam no percurso.
Lazinho, Vitor, Tião e Mauricio eram os cavaleiros, e Meire a amazona, que
percorreram aqueles fatídicos trinta e três quilômetros entre as duas
cidades, acompanhando minha triste figura. Minha montaria voltava a apresentar
problemas e o trote era cocho, lançando carga e cavaleiro para os lados. Corria
grande risco de ganhar o solo, além de ter os músculos castigados por freqüentes
mudanças no trotar. Por diversas vezes preferi apear do animal e seguir viagem
puxando as rédeas. Os glúteos já não aceitavam a sela passivamente.
Ao entrar na cidade de Cruzília fiquei emocionado com a recepção dos locais.
A rua estava toda enfeitada com bandeirolas e uma animada banda tocava o hino
nacional. Fiquei convencido de que meu esforço estava sendo recompensado. De
alguma maneira, alguém havia tomado conhecimento da minha saga e aquela simpática
cidade no sul de minas estava prestando uma sincera homenagem ao viajante que
percorria a Estrada Real. A suspeita apareceu quando o megafone gritou sua voz
estridente, “Viva o Brasil”, e a certeza me golpeou quando o mesmo som metálico
completou, “Viva sete de setembro”. “Sete, sempre o sete”.Lamentei em
voz alta, quase gritada.
Meus novos amigos me encaminharam ao Hotel da praça matriz e enquanto destruía
uma montanha na minha frente, fui abordado por um senhor dos seus sessenta anos
de idade. Minha montaria sobrecarregada e abandonada na porta do recinto chamava
a atenção de todos os passantes. O senhor Waldemar veio me interrogar sobre
minha aventura e quando ouviu meus resumidos relatos, contou, em desabalado
tropeço, que, em um passado distante, percorrera 150 quilômetros até
Aparecida do Norte, e que admirava muito minha persistência e coragem em fazer
aqueles setecentos quilômetros até Parati. Depois perguntou se eu precisava de
alguma ajuda, inclusive financeira. Abatido pelas dores e pelo desanimo agradeci
secamente a ajuda e completei que precisava apenas de incentivo e coragem para
prosseguir. O senhor correu para dentro do estabelecimento, voltando com uma
anciã de mais de noventa anos. A velha senhora tomou minha mão e pude sentir
através de sua pele fina uma força surpreendente. Ela e o filho entoaram uma
prece pedindo a Nossa Senhora que iluminasse meu caminho. A emoção invadiu
meus olhos ressequidos. Dormi um sono reconfortante e pela manhã peguei a
estrada em direção a Caxambu, não sem antes, coletar minhas prendas: uma
rapadura ofertada por Lazinho e sua esposa Meire e uma barra de Queijo Prato
presenteada pelo Sr. Waldemar. Não é à toa que Cruzília detêm o titulo de
“inventora” desse tipo de queijo.
Foram vinte e cinco quilômetros até Caxambu em uma descida tranqüila. A
montaria havia absorvido bem o descanso da noite anterior. Mas agora teria a
Serra da Mantiqueira pela frente e o único caminho possível era a rodovia que
seguia até Pouso Alto, trecho asfaltado da antiga Estrada Real. O problema não
era o asfalto, mas a ausência de acostamento e o pesado trâfego de caminhos.
Muitos romeiros morriam todos os anos, transformando a peregrinação à
Aparecida em uma antecipada visita ao criador. As prefeituras locais investiram,
para evitar novas mortes, em um caminho paralelo, só para caminhantes, mas eu não
consegui localizar essa rota. Encarei a subida sob pesada enxurrada de ofensas
dos caminhoneiros, que por diversas vezes simularam me atirar para fora da
pista, com cavalo e tudo. No alto da Serra parei no santuário a Nossa Senhora
construído em 1932. A vista era inenarrável. Um mar de montanhas a perder de
vista e um vale cortado por vinte quilômetros de estrada serra abaixo.
O sol começava a me devolver a febre e iniciei o trecho até Cruzeiro ás
13:00. O animal definitivamente apreciava as descidas. Soltou o corpo em
velocidade incompatível com sua categoria eqüina. Agora eram os caminhões,
obrigados a descer freando, que eram ultrapassados pelo conjunto.
O cavalo voltava a se chamar Rucinante e vencia as milhas como se o demônio
estivesse ao seu encalço. As curvas eram efetuadas com reclinada perícia, sem
diminuir jamais o passo. A paisagem deslumbrante voava pelos cantos dos olhos. O
verde da serra se fundia ao som do galope e das buzinas estridentes dos veículos
ultrapassados. O negro cavalo, antes pálido e desbotado, enrijecia seus músculos,
antes ocultos sobre o tecido adiposo acumulado. As ferraduras faiscavam ritmadas
sobre o petróleo petrificado. As faíscas tornavam-se labaredas que incendiavam
a floresta a sua volta. De repente uma labareda alheia entrou no campo de visão,
obstruindo o caminho do animal. Rucinante, sem nenhum comando de seu cavaleiro,
travou as patas, demorando mais alguns segundos para parar por completo.
Diante do amedrontado animal um ser enorme resfolegava fumaça pelas ventas.
Era o dragão mais horrível que já tivera oportunidade de pousar os olhos. O
Animal mitológico articulava seu enorme pescoço em direção ao cavaleiro e
seu valente animal, enquanto sua cauda rasgava o solo atrás de si. O urro vinha
acompanhado da abertura total de sua bocarra, que agora era lançada em direção
aos galopantes companheiros. Se o animal não fosse dotado de novas habilidades,
não teria conseguido escapar do golpe que abriu um enorme buraco no solo. O
monstro mastigou o solo adquirido cuspindo-o em seguida para o lado, sobre uma
carcaça de outro animal, possivelmente abatido. Os olhos da fera oscilavam com
a força de seu rugido, ora em forte luz hipnótica, ora cerrando seu poder em
beneficio de um movimento mais brusco.
O cavaleiro sacou sua arma, pronto a destruir para sempre aquele ser único, mas
de repente percebeu que a criatura não era assim tão solitária. Dezenas de
novas aberrações fantásticas surgiram de dentro da floresta completando o
exercito de bestas demoníacas. O cavaleiro ponderou que seria impossível dar
cabo de todas ao mesmo tempo, e considerou melhor ser um covarde, precavido e
vivo, pronto para outras batalhas. Cruzou o terreno desviando das mandíbulas e
caudas ganhando o outro lado da estrada. Seguiu ressentido por sua decisão de não
se sacrificar em nome da aventura. Aumentara a velocidade para deixar o campo da
vergonhosa batalha para trás. Um cavaleiro já podia ser avistado a poucos
metros de distância, sinalizando, talvez a solicitar socorro. Parou rente ao
pobre homem esperando sua lamuria.
- Ei! Homem! Você é maluco? Você não viu a sinalização para aguardar a
liberação da pista? Este trecho está em obras. Como você me faz uma merda
dessas? A Escavadeira quase que te acerta!
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