CAPÍTULO DOZE
Torino – Itália
– 1836
“Um ingleze italianato é il diavolo incarnato”
Provérbio italiano
Aquele garoto, de quinze anos, poderia ser considerado um padre, se bom padre
fosse aquele que mais residências de Deus conhecesse. Ele se perdia em dias
inteiros, caminhados pelas ruelas estreitas, de igrejas barrocas, góticas e
renascentistas.
Realmente poderia ser um padre, se a vontade de seu pai fosse cumprida. Cel.
Burton queria que o filho seguisse a carreira eclesiástica, talvez para pagar
por ele, todos os pecados adquiridos. “Como Cristo, a redimir os outros
pecadores” satirizava o jovem rebelde, que das igrejas e dos claustros queria
apenas “roubar” o conhecimento guardado pela Igreja, a sete chaves, durante
o longo período de domínio da escrita, da cultura e, por que não dizer, da
vontade humana.
Após a aposentadoria prematura do pai, a família Burton se lançou no único
afazer, para o qual tinham extrema competência: viajar. Nômades eternos, com
as graças do meio-soldo, e o dote, da quase nobre, Sra. Marta Baker, os Burton
se davam ao luxo de trocar de residência a cada novo ano. Essa vida cambiante
aumentou no jovem Richard o olhar cigano e a curiosidade inquietante. Aliado a
tudo isso, a variedade de mentores, de línguas e culturas diversas, deram-no a
capacidade de absorver novos costumes e idiomas, com a facilidade de quem sorve
um gole d’água.
E fora justamente um desses mentores, Signore Bugarelli, que lhe dera o
incentivo às pesquisas arqueológicas míticas. O Sr. Bugarelli era um
aficionado pesquisador dos mistérios, que dizia, serem 33, da cidade de Torino.
A cidade fundada, como entreposto importante, na rota de acesso aos Alpes,
ligava a Imperial Roma ao território da Gália dominada. A cidade que em seu
nascimento se chamava
Burton nutria uma verdadeira antipatia pelos padres italianos, que julgava
mercenários farsantes da fé. Mas mesmo com esse sentimento arraigado, não se
mostrava constrangido em estar agora sendo ciceroniado por um padre disforme,
pelo interior da
Anexo a igreja encontrava-se um pequeno museu que narrava toda a historia do
sagrado pano. O jovem Burton tocou, sem nenhuma emoção religiosa, a urna de
prata que abrigou, e salvou o sudário, não sem marcas indeléveis, do incêndio
na catedral de Chamberry, onde a Sidone viveu durante vários anos. Ao entrar no
salão subterrâneo, última escala da visita guiada e paga pelo museu, Richard
não pode conter uma exclamação chula, em bom italiano, ao reconhecer,
estendido em uma mesa gigantesca, o próprio Sudário, que a poucos minutos
havia visto na igreja homônima.
- Não se espante meu jovem, aquele lá em cima é apenas uma réplica do nosso
valioso guardado. És um garoto afortunado, pois a ninguém é permitido visitar
esse recinto. Mas como vi a emoção em seus olhos ao tocar o relicário de
prata, que salvou do incêndio nosso manto sagrado, considerei um justo prêmio trazê-lo
aqui, para que aprecie a restauração do sudário.
Burton não conseguiu expressar com palavras o êxtase que sentia. Em retribuição
ao presente, representou um olhar devoto e um ar de adoração religiosa, que
convenceu o guia e as outras três pessoas que se reclinavam sobre o tecido
estendido. Eles agora abriam espaço para que o jovem devoto se aproximasse da
mesa. Burton pode analisar a trama e os remendos que estavam sendo incluídos na
obra. Seus olhos se encheram de lágrimas, que os presentes interpretaram, com
louvores, se tratar de uma “
-
-
Após “gentilmente” ser escoltado até a saída do prédio, Richard ganhou a Via Piave certo de ter descoberto o segredo do Sudário. Agora com o pequeno livreto do Sr. Bugarelli em mãos, descia confiante em direção a igreja medieval de San Domenico, única representante gótica da cidade. Segundo as anotações do proeminente membro da Magiia Nera, no batistério daquele templo encontraria a primeira pista para a próxima investigação do curioso inglês. Burton adentrou San Domenico sem reparar em sua simples estrutura, que na verdade se enquadrava mais no românico tardio do que no gótico. Leu uma inscrição no batistério que remetia suas investigações para a Piazza della Consolata, onde o campanário do século XI, juntamente com a porta Palatina e o antigo fórum romano, dividiam o ambiente com O Duomo do século XIV, uma construção magnífica que guarda sobre a porta central a mais bela copia do “Cenacolo” de Da Vinci. Sempre copias, desdenhou o jovem.Na fachada lateral direita do Duomo, Burton levantou os olhos para o céu e reconheceu na cúpula da igreja o sinal de que estava no caminho certo. Passando pelo pórtico lateral que dá acesso a entrada principal do palácio Real do Sabaudas, onde o rei Carlo Alberto podia ser visto a qualquer momento em uma das dezenas de sacadas, Richard parou diante da grade de ferro que separava o Pallazzo Reale da Piazza Castelo. A figura de um jovem incrustada em meio ao rebuscado ornamento da grade, trouxe a analogia ao lendário príncipe egípcio que teria fundado a cidade; o Deus sol e o mártir cristão, que segundo a conveniência da Igreja nascerá no dia do Deus Mitra. Burton lançou uma olhadela sobre nova página do livreto e elevou, em seguida, o olhar para as duas estátuas eqüestres que guardavam o portão, que segundo a afirmação do Signore Bugarelli eram a representação dos símbolos estrelares de Castor e Polux, verdadeiros defensores da cidade. Seguindo o caminho indicado pelo olhar de uma das estátuas, passou diante do Palazzo Madama, não conseguindo ficar indiferente ao talento de Juvarra, um dos expoentes da arquitetura torinesa. Circundando o Castelo Medieval anexo, acelerou o passo pelos pórticos da Via Pó, local onde as anotações de Bugarelli se perdiam em divagações. O autor do livreto, após exaustivos anos de pesquisas, não chegava a uma conclusão, para onde seguiria o caminho a partir daquele ponto. Contemplando o capitel que representava o bem e o mal, Richard colocou, decidido, o livreto dentro do bolso do casaco. A sua direita podia ver, a poucos metros, o Palazzo Carignano que há pouco tempo fôra abandonado como morada real, mas que diziam os matutinos, em breve seria transformado em sede do Parlamento, em uma tentativa desesperada do Rei de conter a crescente insatisfação popular com o Reino do Piemonte. Burton interpretou que ali seria um lugar muito visado para conter tamanho tesouro. Apostou na sua criatividade e desceu toda a extensão da calçada coberta que desaguava em uma enorme Piazza as margens do Rio Pó. A praça era separada do rio por muros construídos pelos invasores napoleônicos. Burton, no centro da praça, esforçando-se para não ser atropelado por um cocheiro imprudente, ficou eufórico quando notou que o pico de uma das montanhas dos Alpes, ficava exatamente emoldurado no centro daquela via que acabará de percorrer, dominando impassível, o alto do castelo Medieval. Do outro lado do rio, após a Ponte di Pietra, podia se notar que a nova construção da cidade, a Chiesa da Gran Madre de Dio, fazia uma ligação perfeita entre o Pico do Monte Cervino e a própria construção, lugar ideal para um bando de fanáticos esconder algo importante.
A igreja inaugurada a apenas cinco anos era um monumento ao retorno dos Savoias a cidade, após o exílio forçado pela invasão francesa. Era um edifício de planta central, segundo o modelo do Pantheon de Roma, feito em mármore monocromático e baixo-relevos. Das escadarias do templo, Burton notou que a construção estava na exata altura da Piazza Castello que podia ser avistada a algumas centenas de metros adiante. Essa visão da via Pó era emoldurada por duas estátuas que representavam a Religião e a Fé. Sobre as colunas do templo uma dedicatória ao retorno dos Savoias: “Orde Populusque Taurinus ob Adventum Regis”.
Burton passou alguns minutos a contemplar os distantes Alpes e toda a linha que vinha de encontro aquela inscrição. Selecionando apenas as iniciais da inscrição no frontispício do templo, encontrou a palavra OPTAR. Era o que teria que fazer: Optar. Em qual lugar deveria estar escondido o cálice que serviu o vinho a Cristo, na última ceia, e guardou o sangue do messias após seu passamento? Optar entre aquele pico distante, apontado pelas estátuas, ou aquele prédio recém construído? Sobre as inscrições, um baixo-relevo representava decuriões romanos prestando homenagem a Madona com o Bambino. Aquela imagem antagônica esconderia algum segredo? Talvez, como suspeitava aquele jovem de ideias originais, aquela imagem provasse que o Império Romano jamais ruira, apenas curvando-se ao messias, tornando-se assim o Sacro Império e posteriormente a Igreja Romana.
Burton não quis entrar na igreja, que já sabia conter estátuas em honra da Rainha beata Margherita, que lutou fervorosamente para que seu primo, o antipapa Amadeo VIII , largasse de mão aquela idéia absurda de tomar o lugar do representante oficial de Deus. Ficou sentado na escada, rememorando toda a história contida naquele livreto, que segundo Sr. Bugarelli havia lhe sido ditado em sonho por um anjo. Sempre eles. Contava a história do copo que servira a Jesus, e que muitos, inclusive a seita Magiia Nera acreditavam estar escondido na cidade, que já detinha o Sudário, as lascas e o sangue do pai do cristianismo. Aquela cidade que começou como uma tribo celta, conhecidos místicos; foi arrasada pela invasão de Aníbal muito antes de Cristo pensar em chorar na manjedoura e que depois disso foi sucessivas vezes invadida por romanos, bárbaros, lombardos, austríacos, franceses e toda espécie de gente. Era bastante plausível que ali pudesse estar escondido o Santo Graal, que teria o dom de curar enfermidades e dotar o proprietário de vida eterna. Ali era o entroncamento de várias rotas e caminho de muitos reis e lendas. Arthur, Ricardo Coração de Leão, Frederico Barbarossa: todos cruzaram aquele mesmo caminho indo ou voltando de suas conquistas. Era até aceitável a lenda de que um cavaleiro templário, em fuga, passando por aquele caminho, tivesse escondido o Graal em algum lugar, e que séculos depois a seita do Sr. Bulgarelli estivesse empenhada em localizar o cálice sagrado através de sinais espalhados pela cidade.
Burton resolveu optar, entre crer e não crer. Optou em não acreditar em tudo que dizem os livros. Optou em dizer:
“Caspita! Como mente esse tal Bugarelli.”
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O jovenzinho abandonara por completo a arqueologia mítica. Já descobrira em tenra idade o que muitos anciões almejavam. Salvo novas provas, descobriu que as relíquias sagradas eram todas falsas, fruto de mentes doentes ou interesseiras. Nada de verossímil ou esclarecedor poderia ser encontrado em tecidos, cálices, cascas, ossos ou coágulos sanguíneos.
Burton resolveu abandonar os manuscritos do Mentor Bulgarelli, um fantasioso
jornalista de um periódico esotérico, e sua ridícula seita Magiia Nera, com
seu impronunciável e numerológico i duplo. Mas restavam algumas confrarias sérias
e dignas de inspeção mais apurada. Elas prometiam aos seus seguidores: revelações
de mistérios e conhecimentos ilimitados. Esse apelo encontrava campo fértil na
mente do jovem inquisidor. O jovem Burton já vasculhara a Biblioteca Real à
procura de pistas, de tratados herméticos, revelações mitraístas, resíduos
cátaros ou qualquer informação que o levasse a qualquer espécie de
conhecimento. Lera o Fama
Fraternati, o Aurora,
de Jacob Boehme, o Matrimonio
Químico, de Johann Valentin Andréa e
estudara a fundo toda a história daquela cidade. Torino era repleta de
sociedades secretas que se reuniam em antigas construções romanas e nos
subterrâneos que cortavam a cidade em toda sua extensão central. Essa
verdadeira cidade subterrânea era herança do sítio imposto pelos franceses no
início do século XVIII. Os torineses cavaram elaborados e quase infinitos
dutos por todo o entorno da antiga Cidadela, segurando assim, o avanço francês
em uma tática muito usada na época de minas e contra minas.
Conta-se a historia de um herói local, que conteve o avanço de uma tropa de
franceses que invadiram os corredores subterrâneos. Pietro Micca era o nome do
herói e diversas pinturas retratavam seu olhar quase beato com uma tocha na mão.
Na noite entre 29 e 30 de agosto de 1706 um destacamento de granadeiros
franceses penetrou na galeria principal alta e tentou derrubar a porta que daria
acesso a escada de comunicação com a galeria principal baixa. Foram bloqueados
pelo tempestivo e heróico intervento de Pietro Micca, que acendeu o curtíssimo
pavio dos barris de pólvora, provocando o desabamento do túnel sobre os
invasores. O Corpo de Micca foi encontrado sem vida próximo aos escombros que
impediram o acesso inimigo. Sussurravam à boca miúda, pelas ruelas da cidade,
que um braço de uma fraternidade secular, reuniasse na data fatídica para
celebrar um sabá com emissários da legião do inferno. Para Burton nenhum
frenesi causava esses encontros lúgubres. Nem mesmo se o próprio Hades
comparecesse em sua funesta feiúra. Ele já conhecia o caráter ambíguo e
pouco confiável dessas seitas que estavam proliferando naquele século pós-iluminista.
Maçons, novos templários, rosacruzianos, maniqueístas renovados, adoradores
de Isis, pitagóricos, entre tantos outros. Para Burton, guildas de imbecis que
fugiam do marasmo doméstico para reunir-se em seus clubinhos machistas, a
encenar ritos, elaborar rebuscados códigos e acenos secretos. Uma deplorável
manifestação de
Era por esse motivo, que se dirigia naquela noite quente de agosto para a antiga
“Citadella”, o forte do século XVI. O prédio abandonado e parcialmente
destruído não apresentou obstáculos ao ingresso do encapuzado falso membro.
Burton não sabia qual o traje exato daquela seita “secreta”, optando pelo
clássico branco.
No pátio central da muralha avistou uma túnica púrpura sumindo entre
escombros. Seguiu o vulto e alcançou a entrada secreta, descendo ao primeiro nível
de túneis subterrâneos. Seguiu a luz da tocha que seguia poucos metros a sua
frente. As encruzilhadas eram quase infinitas e o jovem curioso esforçava-se em
seguir seu guia inocente sem ser notado. Ao atingirem o segundo nível o calor
ficou insuportável, mas misteriosamente ao alcançar o terceiro uma brisa
refrescou o ar. Um murmúrio forte anunciou que uma aglomeração estava próxima.
A luz fraca do guia foi absorvida por uma claridade maior.
Burton aproximou-se com cautela e percebeu que o caminho iria se abrir em uma
grande galeria. Espiou rapidamente antes de adentrar o recinto. Percebeu que a
maioria dos presentes usavam costumes púrpuras, mas o negro e o branco também
faziam parte do desfile. Postou-se atrás de um membro que trajava a cor
correlata a sua. Apesar dos seus quinze anos sua estatura era quase soberana
naquela meia centena de cavaleiros. Observou que todos traziam no peito um
pentagrama sobre uma cruz de malta, ladeado por quatro rosas vermelhas.
Manteve-se na última fileira para que seu surrado manto, sem insígnia, não
revelasse sua condição de invasor.
A mente do jovem irrequieto, como sempre, adiantava-se em prever o futuro.
Richard aguardava a revelação dos sinais alquímicos; ou o encontro com um ser
superior, que revelaria magias diversas, entre elas, a invisibilidade, o poder
de voar, ou pelo menos o dom da oratória com eloqüência e sabedoria, aliado a
habilidade de disfarçar-se com tamanha perícia, parecendo sempre nativo em
qualquer lugar do mundo. Os murmúrios cessaram quando uma baixa figura entrou,
trajando um manto branco, trazendo na mão esquerda uma vara multicolorida, com
um emblema que tentava parecer egípcio. Na direita portava uma espada com uma
guarda formada por duas luas crescentes justapostas, na qual Burton rapidamente
reconheceu o desenho plagiado do “Clavicules de Salomon” . O manuscrito “A
Chave de Salomão” era um dos inúmeros relatos que diziam revelar segredos do
templo do rei bíblico, além de outras excentricidades. Richard deu um crédito
ao celebrante que lhe parecia com o senhor que atendia no “
- O irmão Flamel de Biella, mago conjurado de Avalon, pleiteou na última reunião
uma ingerência nossa junto à questura de sua cidade, para que possa reaver um
terreno perdido em litígio com um vizinho. O irmão Hermes Liguriano, guia dos
espíritos de Isis, prometeu interceder junto aquele órgão, utilizando seu
posto privilegiado de juiz – o mestre lançou um olhar ao citado guia, que
sinalizou haver cumprido o prometido - Sendo assim, registro com louvor, que
nosso ilustre companheiro sanou o problema apresentado.
Richard Burton assistiu atônito a algumas dezenas de reivindicações,
argumentos, desculpas e louvores, sempre pautadas nas aspirações mundanas e
materiais dos “seletos” membros. Já começava a ansiar, pelo menos, com
alguma conspiração tenebrosa que reivindica-se o controla mundial, mas os
discursos eram sempre voltados para querelas locais, vaidades pessoais e
interesses menores.
O clima agora, passadas cinco horas de reunião, era de total descontração com
diversos colóquios paralelos que davam um aspecto babélico ao concilio. Ninguém
notou que aquele membro sem insígnia saiu sorrateiramente, antes mesmo da farta
distribuição de petiscos e do vinho Barollo (cortesia do mestre Bicerin, dono
do Café Al Biucerin).
Burton ganhou a superfície sorvendo o ar com toda a força
de seus pulmões. Contemplava os prédios barrocos da Torino dos 33 mistérios,
desabafando sua incredulidade:
‘’- Como tem gente à toa neste mundo!”
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