CAPÍTULO QUINZE
Rio Acima –
Brasil – 2003
Meu cavalo acaba de pisar na cabeça de uma jararaca. Minha passagem por Rio
Acima foi rápida e sem surpresas. Cruzei a rua principal em trote lento,
chamando a atenção dos jovens que infestavam as calçadas. È domingo. O sol já
vai se por e ainda não encontrei um alojamento apropriado. Evitei o centro da
cidade, pois a fauna local infesta a rua, com seus veículos ensurdecedores, que
vomitam músicas inteligíveis, com a intenção clara de se tornar a última em
nossos tímpanos. Após a estação ferroviária desativada, tomei o caminho da
direita, que segue até Itabirito. Não sei dizer aonde encontrarei o
entroncamento para Cocho D’água, posto que, nem os próprios locais me
informam com segurança o local exato. A estrada asfaltada margeia o Rio das
Velhas, que nesta altura já se encontra barrento e poluído. No caminho cruzei
com um caminhão do “Circo do Moises, o Rei do pedal“. Aquela visão trouxe
um diferencial para a viagem, que até então se mostrava exatamente igual a
tudo que via em minha cidade natal. Realmente, circo mambembe, há muito tempo
que não via por minhas bandas. Talvez devido a proximidade com Belo Horizonte.
Seria minha primeira noite de viagem; minha primeira vez longe de casa. E a
primeira vez sempre é surpreendente, porque senão, não seria a primeira vez.
Basta saber se terei uma surpresa agradável, ou não. As casas na beira da
estrada tornaram-se raridade até extinguirem-se de vez. Agora só vejo mato por
todos os lados, com exceção, do caminho que continua asfaltado a minha frente,
e logicamente atrás de mim. Começo a sentir um certo temor. A estrada
inclina-se e meu cavalo se empolga com a descida. A empolgação virá um trotar
mais enérgico, que agora passa para uma cavalgada decidida e finalmente desata
em uma disparada desenfreada. Após uma curva fechada, por pouco não nos
precipitamos, em uma ponte sem proteção lateral. Debaixo dela havia um regato
tranqüilo e uma prainha convidativa. Aquela ladeira vencida fora descrita no
livro “Viagens aos Planaltos do Brasil” de Richard Burton, em sua passagem
por Santo Antonio do Rio Acima.
Na ausência de local melhor, decidi montar acampamento naquela praia fluvial.
Mas notei que para chegar nela, deveria atravessar uma porteira de ferro aonde
se lia o convite “Sítio da Cortesia”. Após longos minutos em divagações
jurídicas; se transpor aquela cancela, caracterizava ou não uma invasão de
propriedade alheia; um automóvel veio, de dentro do sítio, em minha direção,
para acabar com minha dúvida. O dono do lugar de veraneio, José Maria, que
estava, naquele fim de tarde, retornando para sua casa oficial, em Belo
Horizonte, solicitou imediatamente que um de seus criados arrumasse acomodações
para minha pessoa e montaria. Após atravessar mais duas cancelas, agora de
madeira, avistei uma casa no alto de uma colina e por poucos instantes sonhei
ver um castelo. Mas minhas aspirações foram desfeitas, quando o caseiro me
indicou o campo de futebol na beira do rio.
Armei minha barraca e enquanto comia um macarrão instantâneo, pensava no
paradeiro de Xico. Pensava também em Isabel e me desculpava por insinuar sua
volúpia. Tal qual um Machado de Assis pós-moderno havia engendrado na trama
uma insinuação não comprovada. Só que essa Capitu inglesa não era
ficcional, ela existira no passado e por tanto tinha uma história oficial.
Realidade que eu desrespeitei em nome de uma trama. Peço desculpas aos
familiares da Lady,que por ventura souberem desse disparate. A noite caiu de
vez, e agora redijo essas linhas dentro de minha barraca, à luz de uma lanterna
pendurada no teto. Não me atrevo a abrir o zíper de minha barraca, e encarar o
breu que me encara. Os sons oriundos do exterior são tenebrosos, a ouvidos
desacostumados com a fauna noturna. O sono que demorou a chegar começou a
turvar minha vista. Desliguei a luz.
Sonhava o primeiro sono, aonde Isabel se contorcia na grama, como se todos as
coceiras do mundo tivessem se apoderado de suas costas. O vestido aberto até a
altura do umbigo deixava entrever, os pequenos aclives dos seus seios. Ela
mordia o lábio inferior como se quisesse provar o sabor de sua própria carne.
Quando arqueava suas pernas, deixando cair a barra do vestido sobre seu ventre,
um passo pesado entrou no sonho, e o rosto belo de Isabel tomou formas
medusicas, acompanhado de uma língua ofídica, bipartida, que saia de sua boca.
Acordei assustado. A visão da Medusa horripilante havia desaparecido, mas os
passos pesados continuavam no entorno da barraca. Agora que o passo cessara, um
som de alguma coisa saindo do chão substituiu o anterior. Minha mente perdeu o
controle. O pânico tomou conta do meu raciocínio. Já podia ver os zumbis
saindo de dentro daquele campo, possivelmente um antigo cemitério indígena,
profanado pela sede futebolística desse povo invasor. Eu deveria ser o
primeiro, a dormir naquela terra sagrada e, portanto, estaria despertando a ira
dos mortos, que sempre deveriam passear, em noites enluaradas, com a conivência
e, fingida ignorância dos matutos locais. Logo na minha primeira vez, logo na
minha primeira noite ao sabor do terror e já teria um fim horrível e macabro.
O som de raízes arrancadas estava se aproximando da parede lateral da barraca,
juntamente com passos, lentos, mas pesados. O fim estava próximo, aqueles
zumbis indígenas queriam meu couro cabeludo. Já sentia o tacape no meu
cocuruto. A sombra gigantesca produzida pelo forte luar, tomou conta de toda a
lateral. Uma disforme massa negra ameaçou desabar sobre mim. De repente, novo
ruído, agora de um disparo indescritível. Junto ao disparo indescritível, um
cheiro forte tomou conta do ar, e minha mente saiu do estado de transe. Não era
enxofre dos Infernos, nem a putrefação de um morto - vivo.
Era meu cavalo que pastava e aliviava seus dejetos ao redor da barraca. Como
pude me esquecer?
- Maldito Ruminante!!
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