CAPÍTULO 22

Londres – Inglaterra – 1886

                    A Bandeira Real estava tremulando no alto do prédio. Sinal de que a rainha estava em casa. Sempre que a Bandeira era hasteada, significava a presença real naquele palácio, residência oficial da Rainha, apesar de sua preferência pelo castelo de Windsor, recém reformado. Mas a tradição deveria ser cumprida. Cerimônias oficiais, como banquetes com chefes de estado, ou entrega de comendas e títulos, deveriam, inexoravelmente, acontecer no Palácio de Buckingham. A fachada que dava para o Mall estava toda decorada com estandartes da Union Jack. Hoje não haveria troca de guardas, para evitar o crescente afluxo de desocupados que, ninguém sabe por qual motivo, estavam tornando hábito de assistir aquela função, essencial e corriqueira, do palácio. O salão de baile barroco, construído na era de George, o rei que perdeu as Américas e o juízo, estava preparado, com mesa para cento e cinqüenta convidados. A sala de música, onde o convidado de honra daquele dia deveria ser apresentado a Rainha, ganhou um lustre novo, no piso elaborado por John Nash, o arquiteto que transformou uma simpática casa naquele palácio atual.

                    Para chegar a sala de Música, Burton precisava primeiro cruzar o pátio interno do palácio e ganhar as escadarias, que o levaram a Picture Gallery, a coleção pessoal da rainha. Muitos daqueles quadros, pendurados, em alinhada desordem pelas paredes, retratavam muitos cenários conhecidos do futuro cavaleiro. Podia identificar, sem dificuldade alguma, Ticianos, Velásquez, Da Vinci e, sobretudo vários Debret, pelos quais tinha grande participação por estarem ali. As aquarelas do francês, que eram em maior número, remetiam o cônsul a sua aventura naquele país tropical que aprendera a admirar, apesar de não saber bem, por qual motivo.

                    Ao entrar na Sala de Estar Azul, não entendeu bem o motivo do nome, pois não encontrou quase nada naquela cor, a não ser um pequeno sofá de três lugares, estilo Luis XV, com uma tríade de almofadas da cor celeste. As colunas imitavam ônix e o teto, assim como a tapeçaria que cobria toda a sala, só apresentavam matizes vermelhos.

                    Ao invadir a sala de Música, Burton avistou uma senhora, acocorada como uma galinha, com os braços abertos, como se desejasse abraçar o mundo. Na sua frente, a menos de um metro de distância, um menino, ou menina, difícil identificar devido à profusão de babados da veste, babava e tentava levar uma das pernas adiante.

                    - Sente-se, Mr. Burton – disse a rainha sem despregar o olho do garoto cambaleante. – acompanhe os primeiros passos do meu netinho Jorge, que um dia governara todo esse império.

                    Burton reparou que a criança devia ter muito mais que um ano, portanto, bastante atrasado na lição de andar. Temeu que o futuro rei fosse administrar a nação do mesmo modo com que caminhava agora. O nome da criança não colaborava. Apesar de grafado de maneira diversa, George remetia-o ao demente Rei do século anterior. Aquele que além de perde o juízo perdera as treze colônias.

                    A Rainha se impacientou com a falta de celeridade do garoto e levantou-se, largando-o a própria sorte. Imediatamente o menino caiu, mas não demonstrou nenhuma reação, ficando ali, a alisar a barriga no chão, sem nenhuma intenção de sair do lugar. Burton reparou que a rainha havia envelhecido, o que era de se espera, pois agora ela tinha 67 anos.

                    - Vejo que o agente sete repara as minhas rugas. – disse a rainha sinalizando para um criado, que imediatamente tirou o jovem príncipe do local. – Pois é assim a vida, Mr. Burton. O reino pode ser eterno, mas a rainha jamais. Mas esperemos ter colaborado para que o reino permaneça em sua eternidade. O futuro irá julgar. Por enquanto nos contentemos com nossos prêmios. Sua missão no Brasil foi digna de nota, e é por esse motivo que irá receber hoje, seu título de cavaleiro, Sir Burton. Agradecemos sua preocupação extra, em nos fornecer os dados científicos, sobre a aplicação da Pedra-sabão em nossa industria bélica. Realmente o próximo século irá agradecer o seu empenho. Ou melhor. É justamente por isso, que estamos à conversa em Off, Sir Burton. Na verdade o único agradecimento que terá será o meu. Compreende que sua verdadeira missão naquela terra de celerados, jamais poderá vir a público. Espero que compreenda...

                    - Perfeitamente majestade. O que fiz foi por minha pátria. – declamou em ensaiada reverencia – Espero que todos os dados coletados sirvam para o engrandecimento do Império Britânico...

                    - Serão citados, em meu discurso, vários de seus feitos notáveis, mas o Brasil constará apenas como “uma passagem, pelo consulado local”. – cortou bruscamente. – Mas Sir Burton uma coisa me intriga e espero que o senhor me esclareça. A nomeação de cavaleiro não impede que o eleito tenha os seus pecados ou excessos. Ela por sinal, nulifica todos os pecados retroativos. Eu mesma já condecorei verdadeiras aberrações, ao cargo de cavaleiro, ou mesmo a títulos mais importantes. Mas eu sempre fiquei ciente dos pecados de cada um deles. Não me sentiria confortável em nomear um assassino oculto. Eu sei que quando lhe nomeei meu espião número um, apesar de utilizar o numeral sete, eu lhe dei ampla e total permissão para matar. Mas essa prerrogativa deveria ser usada somente no exercício da missão. Eu espero que o senhor esteja entendendo aonde quero chegar, a fim de encurtar minha preleção.

                    - Majestade, realmente, eu acredito que a idade esteja me tomando a clareza – evidentemente desconcertado – Foi alguma coisa que fiz no Brasil?

                    - Sir Burton, francamente, esperava um pouco mais de respeito á sua Monarca. – falou pausadamente a rainha – Eu me refiro claramente a morte, cremos, que acidental, do renomado amigo, Mr. Speke...

                    - Mas majestades, todos sabem que foi um acidente, lamentável, de caça. – lascou seco e seguro, como se já tivesse proferido aquela frase milhões de vezes – O rifle disparou e levou nosso inestimável amigo, para junto do Senhor.

                    - Eu acredito nisso, Sir Burton, e lastimo, que um homem tão experiente na arte da caça e no manejo de armas, tenha tido a incompetência de atingir a própria boca. – falou quase soletrando – principalmente um falastrão, como nosso honroso amigo, e especialmente, as vésperas, de quando ele mais precisaria de sua bocarra.

                    - Só eu sei, majestade, como sofri por não ter tido a oportunidade de debater com o nobre colega. – começando a transpirar - Dizem até as más línguas que ele deu cabo da própria língua, digo, vida, só para não ter o desprazer de se ver derrota no “Duelo do século”

                    - E dizem línguas mais maldosas ainda, que o senhor, veja que absurdo a imaginação dessa gente, teria feito o favor de aliviar a preocupação do aflito Speke. – falou quase declamando – E o pior de tudo isso, Sir Burton, é que as expedições de Sir Livingstone provaram que ambos estavam errados.

                    - Mais um motivo, majestade, para não ficamos em divagações tolas sobre um acidente deplorável. – quase em tom de ameaça – Pelo menos Mr. Speke morreu achando que estava certo. Só lamento que não tenha tido a oportunidade, de como eu, receber o título de cavaleiro.

                    - Seus esclarecimentos e atos me fazem dar por encerado o caso, vamos ao salão de audiências. Os convivas nos esperam.

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                    -... e também, por sua participação na Guerra da Crimeia; por sua brilhante expedição, juntamente com o finado Mr. Speke, que resultou na descoberta do Lago tanganica e do maior lago africano que leva meu nome, o lago Vitória; por seus serviços prestados no corpo diplomático britânico em diversas nações como Fernando Pó, Dhaomé, Brasil, e Siria; e por toda sua vida pautada na verdade e no bem estar da Coroa e principalmente do povo inglês; eu, Vitória, rainha da Inglaterra e Grã-Bretanha, soberana do Império aonde o Sol nunca se põe, e patrona da Igreja anglicana, com os poderes conferidos a minha pessoa, pelo poder divino, declaro em caráter irrevogável, o súdito, Richard Francis Burton, cavaleiro de meu reino. E entregando a ele esse colar, declaro-o, a partir dessa data e sempre: Siiiiiir Riiiiiiichard Burton. – discursou a rainha, dando uma ênfase, de apresentador de rinha de cães, na última frase.

                    Burton apesar de odiar aquele protocolo interminável, estava com um sorriso que jamais estivera no seu rosto. O rasgo na face era tão exagerado que Isabel temia que as cicatrizes somalis se rompessem. Desde que voltara da Síria, há apenas um mês, seu marido não havia passado mais do que poucas horas dentro de casa. Passava a maior parte do tempo em um escritório que alugara no bairro de Smithfield, onde o mar, de imigrantes indianos, tomava conta do lugar. Sabia a esposa, através das incursões de Chico, seu fiel criado, ao local, que seu marido passava o dia a escrever. Burton sempre escrevera, mas agora, sentindo talvez que não era eterno, se esforçava em colocar todas suas aventuras e idéias no papel. Todos seus manuscritos haviam sido consumidos, pelo incêndio de 1860, quando o enorme depósito que mantinha para tal fim, ardeu em chamas misteriosas. Todos seus relatos das aventuras, até aquela época, foram destruídos. Todos não, milagrosamente, do meio das cinzas, ele encontrou o original de “Vikran e o vampiro” sem nem ao menos, uma página chamuscada.

                    Além de reescrever seus pensamentos e aventuras, o agora cavaleiro, estava traduzindo, segundo uma incursão secreta feita pela própria Sra. Burton, os contos proibidos persas Scented Garden, além de estar reeditando o Kamasutra indiano e sua maior e mais completa tradução: Os Lusíadas, do poeta caolho português.

                    Isabel já estava acostumada com o teor erótico, e até instrutivo do Kama Sutra, mas ao deitar os olhos sobre o similar persa, sentiu um misto de medo, revolta, nojo e indescritível prazer. Naquele momento em que seu marido recebia o título da rainha, dentro dela os sentimentos eram antagônicos. Uma vontade férrea de destruir aqueles manuscritos lutava, sem vantagens aparentes, com um louco desejo de decora-los, para sempre, na memória.

                    - Sir Burton, é chegado o momento de discursar, pela primeira vez como cavaleiro – pregoou a rainha, colocando a mão sobre a cabeça do eleito e reconquistando a atenção de todos os presentes.

                    Burton rebuscou na memória todas as línguas que conhecia, pois havia se esquecido de formular um discurso. Pensou naquele “colarzim” que lhe adornava o pescoço. Pensou na injustiça de não ter sua missão no Brasil publicamente reconhecida. Queria agradecer ao Brasil por leva-lo até aquele título inédito, compartilhando-o com toda aquela gente. Estufando o peito resolveu fazer jus aquele colar:

                    - As palavras me faltam pela emoção, mas gostaria de dizer algumas palavras em outro idioma, para que ninguém se julgue esquecido em meu discurso – E abandonando a língua natal, entoou um som, em português, que nenhum português presente seria capaz de traduzir :

                    – Sir Richard Burton. Etâ mundão besta Sô!

 

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