CAPÍTULO 28

Tiradentes – Brasil – 1867

                    Burton delira com sua febre crônica. Sua boca seca hidrata-se no chafariz de São José. Ele observa as três máscaras dos bicos das fontes e nota que as armas de Portugal ainda imperam sobre a construção. Lança um olhar reprovador sobre a imagem de terracota do santo que nomeia o lugar. São José Del Rey, esse é o nome do lugar. Ainda não leva o nome do alferes que, supostamente, liderou uma malograda revolução. Burton tomou conhecimento da “tentativa embrionária” de tentar criar uma república em Minas Gerais. Considerou os personagens e fatos típicos de uma tragicomédia burlesca.

                    A febre agora trazia as lembranças africanas. Com elas a imagem de Speke. “Não é possível que aquele idiota estivesse certo” delirava “... e agora essa expedição de Livingstone que espera encontrar o que já descobri. Acho que conspiram contra minha pessoa. Aquela Rainha vingativa deve estar por trás disso. Só porque não dei o nome do meu lago a ela. Mas Tanganica é muito mais bonito. Lago Vitória. Como Speke pôde ser tão estúpido. Merecia, como ninguém, aquele tiro na cara”.

                    Burton agora subia a Rua da Câmara que o conduzia até a Igreja Matriz de Santo Antônio. “Esse caixote grotesco em azul e branco lembra um templo budista da pior qualidade. Com certeza está cheio de anjos gorduchos daquele aleijado de gosto estilístico duvidoso”. Burton entrou pela porta lateral da matriz e lançou um olhar desprezível aos sete altares que representavam a paixão de Cristo. “Sete. Sempre Sete” criticou dentro de seu cérebro febril. “Pinturas insignificantes e ornamentos que desperdiçam tanto ouro de boa qualidade. Por que não adotam os espaços livres de tantos obstáculos? Esses genuflexórios seriam bem substituídos por cadeiras, ou mesmo, tapetes ao bom estilo islâmico”.

                    Tomando a rua alcançava agora a fachada da casa do padre inconfidente. “Inconfidente é aquele que não sabe guardar confidências?” Delirou sua dúvida na língua portuguesa “Por que tantos nomes para uma revolta fracassada? Revolução, conjuração, levante, insurreição, inconfidência. Tolas palavras para descrever um fato inexistente. Dizem que o alferes de alcunha Tiradentes não segurou a língua dentro da boca e cantou antes do amanhecer”. Não pôde evitar a analogia com Speke e sentir um certo prazer em saber que o tagarela brasileiro teve um castigo merecido.

                    Burton entrou na pequena capela de São João Evangelista dedicada aos pardos da cidade. “Uma igreja para cada cor, até mesmo para os mulatos. Incoerência Mineira, isso sim é fato. Esse povo com esse sotaque peculiar de falar, que não é facilmente compreensível. Um falar introspectivo que come a cauda das palavras tornando quase um milagre entender seus sentidos. O príncipe Max já havia alertado que” eles cortam bruscamente o final das palavras, falam baixo e com a boca meio aberta ““.

                    A febre tornava Burton cada vez mais irritadiço: “O príncipe Max, aquele nobre alemão estúpido e ocioso. O que sabe ele de qualquer coisa? O que sabe tantos outros exploradores dessa terra miserável? Spix, Martius, Langsdorff, Pohnl, Saint-Hilaire, Hardfield, Lund, e toda sorte de mineralogistas, botânicos, astrônomos, naturalistas, entomólogos, paleontólogos e religiosos que estupraram essa gente. Esses últimos os piores entre todos. Padres italianos que infestam essa nação com suas relíquias sagradas. Vendem ovos de mosquito como leite da virgem e já negociam, também aqui em terras do Itacolomi, lascas da santíssima cruz, lagrimas de nossa senhora e farrapos de santos diversos. Uomi Bastardi. O maior perigo que um estrangeiro corre nessas terras é ser confundido com um carcamano, povo que não goza da simpatia dos locais.”

                    Ao passar diante da Igreja de Bom Jesus da Pobreza, Burton avistou um homem de preto espancando um cachorro:

                    - Cane Schifoso! No deve adentrare la Chiesa. La porta no pode essere chiusa posto che é la morada de Dio Santo. Defeca na figa de sua madre.

                        Burton pensou em interceder pelo pobre cão, mas sua febre o tornava cada vez mais insensível. Atravessou a ponte de pedra sobre o ribeirão e tomou caminho em direção a Igreja de São Francisco. No alto do morro, tendo a cidade aos seus pés, conseguiu avistar sua bela esposa que cavalgava pelas ruas irregulares. Sempre acompanhada de seu fiel escudeiro Chico.

                    Do alto podia ver, sem ser visto, o sorriso irradiante de sua jovem Isabel, retribuído com igual largueza pelo jovem crioulinho esfuziante. A mula do rapaz não mais andava na retaguarda da patroa, mas ladeava-a com intima cumplicidade. A dupla ganhou uma trilha em direção a serra de São José. O sino da igreja de Nossa Senhora das Mercês dos Pretos Crioulos repicou seis vezes. O sol escondia-se atrás da serra e a febre de Burton tornava o pôr-do-sol cada vez mais enciumado.

                    Na mente do inglês surgiu a figura disforme de Speke.

                    Burton arrastou sua febre para a Rua Direita em direção a casa onde estava hospedado. Na porta da residência encontrou o Sr. Liverpool que havia visto pela última vez em Juiz de Fora:

                    - Mr. Burton, que prazer reencontra-lo. Fico feliz em rever um compatriota nesse fim de mundo. Sua visão me redime de vários percalços sofridos nos últimos dias. – gritou o músico inglês – Saiba que meu recital em Juiz de Fora foi adiado, pois meu cravo não chegou naquela diligencia do demônio.

                    - Bagagens desviadas são fato corriqueiro por essas paragens. – Tentou se animar com o assunto Richard Burton – Mas espero que pelo menos o concerto de Barbacena tenha acontecido.

                    - Antes não tivesse conseguido um órgão substituto. O Inferno sempre pode ficar mais quente, caro amigo. Aquela é outra localidade onde o gênero humano não goza de plenas faculdades mentais. Terra de lunáticos. Ovacionaram minha apresentação, antes do fim, com uma chuva de rosas. Nem ao menos tiverem a compostura de retirar os espinhos.

                    - Sinto muito que sua turnê por terras brasileiras não esteja a altura de seu talento – socializou Burton apesar de nunca haver ouvido um único acorde do músico em questão – Já não bastasse nosso dissabor naquela taberna dos diabos em Paraibuna.

                    - A pratica nefasta daquele comerciante é regra geral por essas terras. Acrescentam sempre algumas cervejas a mais em nossas contas. Já fui obrigado a sacar o revolver para fazer valer meu direito de consumidor. – disse alisando o coldre.

                    - Esse povo tem um artifício silencioso de enganar, nós estrangeiros – disse Burton com conhecimento de causa - Esse ar meio aparvalhado e falsamente estúpido faz parte da argúcia dessa camarilha de salteadores.

                    - E nem ao menos adianta reclamar as autoridades locais. Fiz papel de imbecil ao me dirigir à intendência de São João, para prestar queixa de um hospedeiro, que me cobrou cinco diárias a mais do que o combinado. O funcionário me levou mais alguns réis na promessa de que faria o comerciante “pagar caro por aquela ofensa”. Quando voltei no dia seguinte, já não era o mesmo cidadão atrás da mesa de oficial. O novo personagem insinuou que eu deveria pagar uma pequena contribuição ou seria enquadrado em desacato, pois realmente, não poupei adjetivos a malta de facínoras.

                    - O pior é que a coisa tende a piorar, na medida em que entremos, mais e mais, pelo interior do Brasil. Dizem que em Sabará é preciso dormir com um olho aberto, sob ameaça de acordar sem as vestes.

                    - No seu caso é mais preocupante, caro Burton, posto que viaja com sua senhora. Por fala nisso, onde está a Sra. Burton? Muito simpatizo por sua pessoa.

                    - Ela está recolhida aos nossos aposentos, ainda não refeita de seus enjôos constantes. È esse maldito tempero local, por demais condimentado para nossos paladares civilizados. Essa gente insiste em misturar todos os pratos possíveis e imagináveis. Dão até um nome para a coisa: Mexiriboca. Sempre com a profusão de carne suína. Carne que não me agrada, pois não sei se sabe, simpatizo com a doutrina islâmica.

                    - Realmente já senti o resultado desse tal mexido e ainda cai na tentação de provar o destilado local. Confesso que o delirius tremis dessa tal pinga é superior ao absinto holandês. Mas o pior de tudo... – Mr. Liverpool já ia destilar sua, injusta, insatisfação com o queijo mineiro, quando suas idéias foram eclipsadas pela visão da Sra. Burton entrando pela Rua Direita em desabalada cavalgada. Vinha lívida e bela, com a face irrigada e longe de qualquer aspecto doentio. No seu encalço a mula de Chico fazia milagres para alcançá-la. – Vejo que o ar de Minas é propicio a recuperação dos enfermos. – mudou de sentença o Sr. Liverpool.

                    Burton encenou seu sorriso mais amarelo enquanto acompanhava o palio que seguia até os estábulos da propriedade. Ao perder de vista os animais e seus jóqueis despediu-se do amigo e entrou apressado na casa. Trancou-se no quarto a espera de sua esposa. O grau da febre subia.

                    Da mente não conseguia afastar a imagem de Speke com os miolos espalhados pela relva.

 

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