CAPÍTULO 32
Lima – Peru -
1869
As ruínas incas visitadas naqueles últimos dias, não conseguiram esconder a
ruína física daquele homem. O termo andróide seria cunhado muitos anos depois
por algum escritor fantasioso, mas era o único termo capaz de ilustrar o estado
mental daquele homem. Sua vida era encenada sem nenhuma interferência pessoal,
como se um comando invisível fizesse às vezes de sua vontade. Nem ao menos
sabia como estava, ali agora, largado sobre aquele colchão listrado e sem lençol,
que guarnecia aquela cama enferrujada de molas. Da janela do exíguo cubículo,
que habitava há alguns meses, podia avistar os picos nevados dos Andes. A visão,
para ele, poderia ser interpretada como os Alpes italianos, ou mesmo o
Kilimanjaro Africano. Burton não sabia onde estava, nem lembrava que tinha uma
vida fora dali.
A mente pregava-lhe peças maldosas transportando-o para as margens do rio das
Três Velhas Índias. Via uma mulher belíssima abraçada a um negro medonho.
Riam entre si e lançavam gargalhadas em direção ao espectador. A cabeça de
Burton doía com a lembrança e o coração era torturado por um opressor cruel
e eficiente. Balançava freneticamente o rosto em negativa, como se assim, fosse
capaz de expulsar tais pensamentos para fora da cama, atirando-os contra a
parede.
Tentava agora eclipsar a visão com detalhes de sua viagem Rio das Velhas
abaixo. O barco adquirido do desonesto Sr. Viana quase se desmanchou já nas
primeiras milhas de viagem. As cordas eram podres, a pólvora úmida e os
alimentos acondicionados em barris estavam em avançado estado de putrefação.
A carne defumada ao sol, como era tradição naquela região, foi recusada até
mesmo pelas piranhas que infestavam certas paradas. Nem mesmo pessoas a beira da
mais completa anemia aceitavam aquela comida.
Burton chegou a Salvador completamente deprimido. Permaneceu na cidade por
algumas semanas aguardando um vapor que o levaria para Santos. Foi lá que
conheceu uma jovem mulata que cuidou de sua moléstia adquirida nos Estados
americanos. Ficou sabendo que existia realmente uma tal entidade maligna que
roubava o vigor dos homens, geralmente a pedido de outra mulher, raramente a
pedido de um homem. Sentia-se ridículo pulando sete ondas na beira da praia e
imolando sete galináceas negras aquele demônio com nome de ave. “Sete,
sempre o sete”. Repetia enquanto pulava mais uma onda. Mas considerava essa
maratona exótica mais suportável que as inúteis garrafadas ingeridas no norte
de Minas. Sua curandeira explicou que um inimigo havia solicitado seu martírio.
Como aquela pratica só era comum no continente negro e ali naquele país que
absorvera tão bem a cultura Afro, Burton não teve duvidas em eleger o mandante
daquele crime. “Speke, seu desgraçado”.
Ao chegar em Santos após testar seu recobrado dom em terras soteropolitanas,
encontrou o convento de São Paulo vazio. Isabel havia deixado o país,
retornando para o número 14, da Square Montagu, em Londres. Junto havia levado
o fiel criado Chico. Burton ficou tentado a seguir os passos da mulher, mas suas
atribuições diplomáticas impediam tal arroubo. Mr V. designara-o para uma
nova missão: Deveria se infiltrar nas tropas imperiais brasileiras que lutavam
no distante Paraguai. A rainha queria um relatório detalhado do campo de
Batalha, para aprimorar os métodos empregados pelo exercito britânico na África
e Ásia. Tinha tido noticias de que os brasileiros, argentinos, uruguaios e
paraguaios lutavam com empenhada carnificina, não respeitando nenhuma espécie
de convenção, tratado ou tática. O cavalheirismo britânico estava sendo
destruído em solos africanos por muçulmanos fanáticos e selvagens sanguinários.
A noticia de exércitos que degolavam seus prisioneiros para economizar balas,
causou admiração à rainha que considerava que, estava chegando a hora do
Mundo deixar os sonhos de lado, principalmente na beligerância. “Guerra é
guerra” berrava a rainha.”Nós queremos matar o inimigo e não cabe
formalidades no campo de batalha. Façamos, como os índios brasileiros,
argentinos e paraguaios.Degolai.”
Burton agora estava no acampamento militar, do lado brasileiro, escutando a
torrencial chuva que encharcava a barraca. Os tiros de canhão cessaram enquanto
a intempérie úmida dificultava o acendimento dos pavios. Burton relembra seu
estudo, encaminhado a Mr. V, sobre as aplicações bélicas para a pedra sabão.
O tratado foi brilhantemente disfarçado em um “Estudo sobre a aplicação da
esteatita na fabricação de cachimbos”. Na verdade Burton sugeria o uso da
pedra, melhor retentora natural de calor, na fabricação de cochos para pólvora,
nos novos canhões britânicos.
Os clarões dos raios voltam a dar lugar aos lampejos bélicos. Os trovões são
substituídos pelos estrondosos cuspes polvorosos dos canhões. A chuva
abandonou o campo de batalha. Burton se aventura para fora de sua tenda. Ele está
comodamente alojado no alto de uma colina, a salvo da carga inimiga e do fogo
amigo, que costuma matar mais que as ineficientes armas paraguaias. Não fora
difícil convencer seu “amigo” Pedro a colocá-lo naquela situação
privilegiada. Ele era a única testemunha civil nas redondezas. Pelo menos a única
que não corria o risco de ser chacinada pelas tropas imperiais. Dissera ao
crente Imperador que pretendia relatar as batalhas, em loco, para poder escrever
um livro, seu primeiro romance. Diante da pergunta, não esperada do Pedro II,
que indagou sobre qual o nome do livro, Burton improvisou um “Tempestade nos
Pampas”.
Do alto de sua colina o Capitão inglês, agora em trajes civis, podia ter uma
visão privilegiada do acampamento do comandante em chefe do exercito
brasileiro. O recém graduado Duque de Caxias aparecia agora, oriundo do
interior de sua tenda branca. Aquele militar de carreira brilhante, quando Barão
de Caxias, já debelava rebeliões pelo país mostrando a tempera de sua espada.
Na posição de Marques de Caxias já mostrara aos insurgentes mineiros de Santa
Luzia sua determinação em implementar a Ordem e o Progresso, lema que tomaria
de assalto os anos vindouros.
Burton era o único correspondente com total liberdade de acesso aos campos
brasileiros. Não que houvesse censura, mas é que os “emissários” oficiais
teciam seus textos elaborados e heróicos em suas confortáveis e seguras
poltronas no Rio de Janeiro. O imperador considerava mais crível e controlável
esse conforto. Podemos afirmar que Burton foi a única “testemunha ocular da
historia”.
Ele notava agora que o Duque se impacientava com qualquer coisa. Lançou mão de
sua luneta portátil, presente da rainha, e pode colocar o close, do barbudo
comandante, emoldurado diante de seus olhos. Era capaz de utilizar a técnica,
adquirida em Londres, que permitia ler os lábios em movimento de um locutor a
distância, tornando inteligível o conteúdo da prosa. O Duque estava em posição
vulnerável para tal técnica. Burton era tão perfeito no que fazia que
narrava, para si mesmo, simultaneamente, o discurso de sua vítima. Criando
inclusive um sotaque carregado para o militar.
- Mas como não querem avançar? – disse Burton segundos depois da frase ser
proferida por Caxias. – É uma ordem minha, do Duque de Caxias. Não podem
recusa-la
Infelizmente Burton não conseguia traduzir as palavras do tenente a frente do
Duque, pois o mesmo se mantinha de costas para o inglês.
- Não me interessa as convicções de cunho moral. Uma ordem é, e sempre será,
uma ordem. Cumpra-a. Sob pena de corte marcial, ou mesmo, para encurtar o
processo, já que estamos em guerra; sob pena de fuzilamento sumário de quem me
desobedecer. Vá lá e diga isso a eles.
Burton acompanhou os passos nervosos do tenente, que sumiram atrás da colina
que divisava o campo de batalha, de onde surgiam clarões e barulhos infernais.
Voltou os olhos para o Duque que continuava em pétrea posição diante de sua
tenda, agora um pouco amarelada pelos últimos raios de sol. Passados longos
minutos, que perfizeram quase meia hora, o tenente aflorou seu quepe em direção
a barraca do comandante.
- Como assim vão recuar? Eu não dei ordem de recuo! Eu ordenei ataque total,
incondicional e sem prisioneiros, civis ou militares. Essa batalha deve ter fim
hoje, pois devemos por fim a essa guerra, nem que seja com a total eliminação
de todos os paraguaios da fase da Terra. – repetia Burton para uma platéia de
abutres sul-americanos que mais tarde catalogou como urubus.
Novamente o tenente se dirigiu para o front. O Duque parecia uma estátua fixada
em praça pública, imutável nas feições, inerte nos movimentos. A inércia
do comandante brasileiro fez aquela longa hora parecer uma eternidade para
Burton. A tenda já se apresentava totalmente negra, só iluminada pelo fogo
incendiado por um soldado. Após essa infinita pausa um sargento colocou suas
insígnias em direção a barraca do Duque. Os clarões das explosões tornavam
seu caminho claro como o sol do meio dia. Dessa vez, apesar da semi-escuridão,
esse novo personagem ficou em posição propicia a leitura labial.
- Meu comandante! Trago noticia lamentável do Front. O Tenente Peixoto foi
alvejado por nossos soldados que se recusam, terminantemente, em lançar carga
sobre o vilarejo, alegando, os mesmos, que lá só se encontram mulheres e crianças.
Informo que sou a patente mais graduada no momento e todos oficiais foram
mortos. Aguardo instruções.
- Instruções o cacete! – explodiu em ira a estátua do herói – Eu vou
mostrar para esses filhos da puta como se ganha uma guerra. Essa negrada vai
invadir o vilarejo e só vamos parar a carga quando estivemos no centro de
Assuncion, comendo o fígado do maldito Lopes. Vamos seus filhos da Puta, vamos
acabar com essa merda de Paraguai.
O Duque correu com a espada em riste, sumindo atrás da colina, não sem antes
ordenar o cessar fogo dos canhões.
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Na manhã seguinte Burton já percorria o resultado da batalha. Praticamente não
avistara nenhum morto fardado. A imagem do vilarejo destruído só era menos trágica
que a dos corpos de mulheres e crianças espalhados por todo lugar.
Caminhava entre aquela paisagem dantesca quando uma voz desconhecida o chamou:
- E então caro amigo. O que está achando da nossa Guerra?
Ao se virar Burton reconheceu a figura do Duque e lembrou-se que, realmente,
ainda não tinha tido o desprazer de ouvir a voz daquele homem, apesar de já
sabe de cor o teor de suas palavras.
- Espero estar colaborando para o engrandecimento de seus relatos. – insistiu
o Duque que se aproximava com a farda azul quase toda tingida de vermelho –
vocês ingleses não tem batalhas tão apimentadas como as nossas. È questão
do sangue quente latino.
Burton em poucas vezes em sua existência, conseguira ficar sem argumentos
inteligentes para uma discussão filosófica. Aquele era um desses raros
momentos.
- Os inimigos estavam alojados nessa vila, muitos disfarçados como pode ver.
Foi necessário um sistemático trabalho de nossa infantaria para conquistar
esse terreno...
- Conhece Camões, senhor Caxias? – recobrou a fala o inglês.
-É claro que sim! – confirmou o duque aturdido pela intromissão de sua
explicação bélica.
- Se não se importa, eu gostaria de recita-lo um pouco. – Burton demonstrava
agora uma inércia de estátua.
- Vocês escritores são mesmo muito pândegos. Recite o que quiser, caro amigo,
mas é na prosa que deve mostrar seu talento, assim espero – ameaçou o Duque
sem tirar os olhos do inglês – Alias sou seu mais fervoroso fã. Adorei seu
“Peregrinações a Meca e Medina”. Faltou um pouco de ação, mas mesmo
assim primoroso. Espero poder figurar em seu romance, que sei... é uma... de
suas missões neste campo.
- Estava justamente a cunhar uma frase pertinente para esse momento. –
recobrou os movimentos Burton – Pensei em algo como: “Quem for ordinário
que me siga!”.
- Excelente Mr. Burton.Excelente – riu até o canto das costeletas o duque
fingindo não entender a provocação – Mas vejo que o amigo não entende nada
de exercito. Só se trata o soldado desse modo durante a marcha. Ordinário
Marche! Que significa que o conjunto deve marchar, mas não considero correto
chamá-los assim durante o frescor da luta. Ah! Desculpe-me, esqueci que o caro
colega é Capitão de vosso exercito. Deve ter sido então um erro de semântica,
coisa comum quando se escreve em línguas estrangeiras. Mas sua idéia é boa.
Por que não tenta assim: “Quem for brasileiro que me siga”. Creio que ficará
mais aceitável ao longo da historia. Afinal Sr. Burton o que aconteceu na noite
passada jamais poderá ser reencenado a não ser em nossas memórias. Pena que
ainda não exista nada capaz de perpetuar esses instantes.
- Realmente é uma pena – concordou fingidamente Burton, conhecedor que era
dos experimentos científicos dos irmãos Lumiere.
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