CAPÍTULO 34
Trieste – Itália
– 1890
“Alma minha gentil que partiste...”
Camões
O ambiente recende a flores. Um velho contempla o teto decorando os desenhos que
o acaso forma. Pensa naqueles diminutos corpúsculos que vagam pelo cristalino
de seu glóbulo ocular, projetando-se na tela branca a sua frente. São invisíveis,
mas estão ali. Só ele pode ver, mas se assemelham a galáxias infinitas. “Um
olho um universo”. Tenta dar fim a seu dilema, mas considera um tanto ambíguo
e ao mesmo tempo simplista.
A casa era ampla e ficava diante do corso Garibaldi. Mas o velho, que tossia a
plenos pulmões, estava alojado em uma mansarda que recebia, pela clarabóia do
teto, uma luz fraca, todavia clara. A neve definia que o inverno ainda iria
longe. O fluxo de carruagens na via enchia o ar de cascos e rangidos. Os sons do
cais vinham distantes.
Aquele velho não teria continuidade. Suas células seriam consumidas por um
sistema cruel, reduzidas a partículas elementares que iriam se agrupar em
outras células, mas em nada parecidas com aquele idoso. Transmutariam talvez,
segundo a crença Hindu, em um ser pegajoso e acéfalo que sem rumo esburacaria
o solo, fertilizando-o. Seria sua única colaboração prática ao sistema hermético
em que estava inserido. A única fecundação deixada para a natureza. Experiências
e livros poderiam ser considerados criações, mas não naturais e progressivas.
Um livro poderia ser eterno, mas sempre seria um livro. Um filho apesar de efêmero
e mortal tem ilimitada capacidade aritmética de progressão. Um único filho,
apenas um, é capaz de em pouco mais de quatro ou cinco gerações, perpetuar um
nome. Um livro ficará na prateleira a espera da curiosidade e boa vontade
alheia. Os filhos podem gerar também experiências novas para humanidade, ao
contrario do livro, que se encerra na última página.
Lamentando sua falta de descendência aquele velho queria se perpetuar em uma única
criação. Uma frase. Um desfecho perfeito que resumisse toda sua longa e
experiente existência. Algo que deixasse para as gerações futuras um legado
para ser compreendido, ou simplesmente analisado.
Sua pele encarquilhada apresentava mais marcas que qualquer similar da mesma
idade. As cicatrizes se camuflavam com perfeição entre elas. Suas mãos
oscilavam ao mesmo ritmo que sua mente. A febre era sua companheira diária,
parceira de muitas confidências. Os órgãos internos já mostravam caprichos
embaraçosos. Sua cama, ao contrario do quarto, exalava uma murrinha azeda de
cerveja digerida, destilada e expulsa. Suas roupas eram brancas, com exceção
das nodoas de comida derramada. Seus cabelos eram fartos, porém fracos e
esbranquiçados. Seus dentes remanescentes, fraturados e podres, exalavam um
odor férreo e insuportável. Os olhos, que continuavam a fitar o teto, estavam
quase obstruídos pelas pálpebras pesadas e enrugadas.
Seu coração atormentado sente a ausência da esposa. Ela é devorada por
dentro, sabe ele, por um caranguejo cruel e incurável. È forte, mas
ineficiente, em tentar ocultar esse fato do marido. Quase não tem mais condições
de ir visitá-lo naquela cidade italiana. Ele leva seus dias a reler e
reescrever seus livros, como se assim, fosse possível mudar alguma coisa em seu
passado. Ela passa seu resto de existência, que não será longa, cavalgando
pela pradaria inglesa, sempre acompanhada de seu fiel companheiro Chico, não
aquele primeiro, morto em um acidente de caça, mas o filho desse. O primogênito
do criado não quis a gentil oferta da Sra. Burton, recusando o sobrenome de
cavaleiro inglês. Preferiu adotar o nome da família paterna, Viana da cidade
de Sabará. O jovem mulato retornará, em breve, para sua terra natal e fincará
no solo da cidade de Borba Gato uma prole promissora. Que fará honra ao seu
nome deixando uma progressão aritmética de Chicos pelo Mundo. Muito diferente
daquele velho que contrai seu músculo torácico pela última vez.
Sente a ausência de Isabel apesar de, nos últimos dias, odiá-la com toda a
força de seu bilioso ser. Não perdoou a pira feita com seus manuscritos
persas, que revelavam a quinta essência da arte do sexo perfeito. Tinha certeza
que aquele ato de sua mulher era uma vingança infantil, porem não menos justa,
contra anos de resignada submissão. Não era justo que o Mundo tomasse
conhecimento, através de seu estimado marido, de algo que ela mesma fora
privada. Culpariam o desejo da Sra. Burton de manter o nome e moral do marido
intacto, desvinculando-o de obra tão profana, mas na verdade algumas pessoas,
duas talvez, sabiam que, a bem da verdade, Isabel não era dada a tal
puritanismo destruidor. O “Scented Garden”, ou Jardim Perfumado, se tivesse
tido a oportunidade de ser publicado em português, ardeu nas chamas, exalando
todo seu perfume sobre a face iluminada de Isabel. O mundo fora privado de obra
única, infinitamente superior ao similar indiano, o Kamasutra.
Após deixar Santos e se aventurar pelos campos de batalha paraguaios, Burton
aceitou o consulado de Damasco, de onde pode terminar mais alguns relatos sobre
a guerra platina. Durante os longos anos seguintes continuou o mesmo estilo de
vida adotado em sua passagem peruana. Era um autômato, sendo arrastado pela
vida até a inexorável morte. Se no Brasil, já não era mais o espelho do
aventureiro, invasor de cidades sagradas, agora nem vestígio daquela figura
apresentava. Passou quase duas décadas inteira perambulando por cargos diplomáticos
no Oriente Médio. Nem mais missões secretas tinha para entreter-se. Assim foi
sua vida até o ano em que foi indicado, pela rainha, para receber seu titulo de
cavaleiro. Retornou a Londres e após receber seu pequeno colarzim, que agora
jazia sob a cama, servindo de calço para uma perna capenga, aceitou prontamente
o consulado de Trieste. Alguns tratados sobre o antigo povo etrusco e algumas
revisões em sua extensa obra o levaram até aquele dia, em que seu pulmão iria
inflar-se pela última vez.
Sabia que o véu negro da morte iria aconchegá-lo em breve.
Tentava buscar algum arrependimento para expiar nos seus últimos instantes. A
única passagem merecedora de remorso era a invasão da Meca. O furto da pequena
pedra fora um desacerto basal. Burton tinha certeza que os poderes da pedra
deveriam ficar restritos ao interior da Caaba. A rocha tinha o poder de tornar
seu portador demente, tornando-o depois ciente de sua verdadeira personalidade.
Destruía para depois reconstruir. Era Shiva, a deusa ambígua da destruição e
do renascimento. Tinha sido assim com ele, e seria assim com o infeliz que a
encontrasse, posto que já não mais estava em poder do inglês. Richard não
tinha a mínima idéia de onde perdera a pedra sagrada muçulmana. Se soubesse não
estaria perdida.
Burton tentou elevar uma prece aos céus, mas percebeu que sua fé não era
verdadeira. Qual delas seria? Convertido ao islamismo tinha a convicção que não
teria uma dúzia de virgens esperando-o após seu féretro. Muito menos néctar
e ambrosias, ou qualquer outra espécie de quitutes celestes. Desconfiava que
nada o aguardava, após o cerramento de seus olhos. Procurou uma imagem para
temer: uma Kali com língua de fogo a devorar crânios; um anjo caído sedento
de almas; uma entidade zombeteira a castrar órgãos; talvez tudo isso junto.
Mas não conseguia tornar nada crível, nem mesmo um Deus entronizado
esperando-o para acertar contas. Lembrou da lenda islâmica que cita, que no dia
do juízo final irão se abrir vários olhos na pedra sagrada, quando todos
nossos pecados serão revelados. Temia apenas o destino da pedra. Lamentava não
saber seu paradeiro.
Um pequeno pânico invadiu seu corpo. E se tudo fosse realmente uma farsa? E se
nada daquilo tivesse sentido? E se toda sua existência não fosse nada alem de
uma passagem, sem nenhuma recompensa ou revelação pos mortem? E se todo
conhecimento adquirido, com tanta volúpia, morresse junto com ele? As indagações
foram afastadas com o repicar do sinete que tinha agora nas mãos. Chamava o
lacaio, como se esse tivesse a resposta para suas aflições.
Já estava acamado há duas semanas e seu único contato com o mundo era
Francesco, seu serviçal. Francis, Francisco, Francesco, sempre eles. “Maldito
nome”, delirava Burton. Mas pior era a corruptela: Chico. Soava como uma
ofensa. Debatia-se na cama quando o criado entrou no quarto trazendo água
fresca e o matutino do dia. Burton fazia questão de saber de todas as
novidades, e uma de suas maiores tristezas, era abandonar um Mundo repleto de
novas maravilhas. Cinema, Luz elétrica, carruagem sem cavalos, quanta
modernidade seria deixada para trás. Aquele excesso de curiosidades a serem
desvendados, tornava qualquer vida, por mais grandiosa que fosse, ínfima.
O mudo criado trocava os copos sobre o criado-mudo, e deixava uma jarra do
mineral liquido, repleto de partículas invisíveis que aumentavam o sofrimento
de Burton. O calcário daquela água acumulava nos rins combalidos do inglês,
trazendo de vez em quando lembranças doloridas de sua existência. O
empedernido assistente deixou o recinto do mesmo modo que entrou.
Voltava os delírios àquela cabeça ainda descomunal. As lembranças surgiam
sem nenhuma ordem linear ou temporal. As imagens permaneciam mesmo de olhos
abertos. Negras tetudas, paquidermes enfeitados, cálices sagrados, Reis
perdidos, Reinos encontrados, Moleques espertos, mulas teimosas, tropeços,
tombos, guerras, lanças, lagos, rainhas, corvos... sete... odaliscas... sete...
voltas... sete... pedra, vida, única. Após a breve viagem no tempo a mente
voltava a tomar posse daquele corpo abatido.
Hoje Burton não iria abrir o jornal. Tinha uma missão muito importante a
executar. Sua última missão. Sua frase final. Não era suficiente apenas
formular uma seqüência de palavras com algum sentido, era preciso primeiro,
definir em qual dos 28 idiomas dominados seria articulada sua idéia final. A
principio pensou ele em sânscrito, mas considerou que a língua de Ganesh não
seria fiel aos seus sentimentos. Considerava, naquele momento, que o deus da
sabedoria morreria junto com ele. Descartou por completo os outros cinco idiomas
hindus conhecidos. Desconsiderou qualquer língua morta como latim ou aramaico
antigo, temendo ter sua frase eterna sepultada na manjedoura. Rejeitou o persa e
o árabe por questões de estética e aceitação. Também desistiu das dezenas
de dialetos africanos, iorubas, somalis, ou maris, por considerá-los pobres de
vocábulos. O italiano incorreria no plágio devido a grande utilização em lápides,
modismo abominável deste século. O inglês, que se tornara universal com a
expansão do império, seria por demais obvio. O francês uma execrável idéia.
O português de seu poeta maior, realmente, era nasalado como sentenciara a
Rainha. De todas as línguas restantes sobrava um pequeno dialeto aprendido, mas
nunca praticado. Não tivera oportunidade de encontrar o povo daquele idioma,
mas se esforçara em aprender algumas expressões. A mais comum, quase uma
instituição, era Ita, encontrada em quase todos os nomes próprios de
localidades brasileiras. Significava pedra em Tupi.
Burton forçou a mente em conexões com o pequeno grupo de palavras
conhecidas.”Ita curui, no curui te Ita”. Não ficou satisfeito, pois
descobriu que só dominava substantivos na língua dos aborígines. Traduziu
depressa para o inglês.”Have a stone in my way, in my way have a stone”.
Optando finalmente pelo bom e velho português de Camões. “Havia uma pedra no
meu caminho, no meu caminho havia uma pedra”.
Lançou ao vento a última frase sem platéia e testemunha. Um sorriso
emoldurado pela cicatriz somali atestava seu alivio. Missão cumprida. O músculo
cardíaco cessou, os glóbulos estancaram a meio caminho das pleuras, o cérebro
procurou explicação para as paralisações e começou a emitir ordens. Os
nervos a principio acataram instruções e cumpriam suas tarefas normais. Mas os
músculos continuavam seu piquete. Os pulmões expulsavam a última platéia e
fechavam todas as sessões. Nenhuma imagem era projetada na grande tela
craniana. O comando central diante do colapso generalizado admitiu o fim das
atividades. Nenhuma aura, luz ou manifestação fugiu daquele corpo. O corpo
estava inerte sobre a cama, recebendo a luz fraca, porém clara, do sol
distante. Se não fosse por Francesco teria ali apodrecido.
Mas uma coisa fugira daquele quarto, pela diminuta janela, ganhando o espaço.
A frase.
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