CAPÍTULO 36

Lagoa Dourada – Brasil – 1867

                    Burton conduz Camundongo com rédea curta. A cabeça experimenta uma sensação inédita. Uma enxaqueca monstruosa fruto da maldita beberagem ingerida na noite anterior. Com a ressaca  da cachaça da festa de São João, Burton segue perdido em pensamentos. Relembrava a fogueira da noite anterior e a origem daquela festa católica, o dia santo mais antigo do mundo civilizado. O Dia do solstício do norte, comemorado em toda Europa desde os primórdios, e quando começa a dakhshanayan indiana. Mas aqui nestas paragens não representa nada, e para piorar cai na época mais fria do ano.

                    A cachaça é uma instituição local. Todos bebem sem cerimônias ou pudor. “O gosto é de cobre e fumaça, em proporções iguais, e quando a catinga ou fedor empresta o espírito, não mais pode ser tirado. Teria, alias, tanto valor na Europa como a aguardente de trigo do Canadá e a aguardente de batata de Hamburgo, da qual se faz verdadeiro cognac. Há duas qualidades de cachaça: a comum, feita de cana-de-açúcar, e a crioulinha, ou branquinha, a velha produção da Madeira. A última é a preferida, como mais fria e menos prejudicial. A aguardente é a bebida de heróis, e aqui os homens bebem heroicamente sua cachaça. O resultado é a hepatite, a hidropisia e a morte. Nós estrangeiros custamos a acostumar-se com o cheiro, mas o homem, uma vez dado a ela, pode contar com o delirium tremens e um túmulo precoce. O seu emprego lícito é no banho, depois da insolação, ou para livrar-se do incômodo das mordidelas dos insetos. O hospedeiro brasileiro geralmente manda uma garrafa dela juntamente com a tina de água quente. O efeito dessa aguardente sobre a população e a freqüência das cachaçadas ou brigas por bebedeira, muitas vezes terminando em tiro ou em facadas...”. Burton tecia um breve relato sobre a preferência nacional, que faria parte de seu próximo livro, quando de repente, Camundongo elevou as patas dianteiras” como se ele tivesse avistado um elefante me atirando ao chão “ escreveria também mais tarde em seu diário.

                    Ao chegar rapidamente ao solo (por sinal no mesmo local onde dizem, caiu o Imperador em visita ao lugar) Burton perdeu os sentidos por alguns instantes. Amparado por todos foi interpelado, ao recobrar os sentidos, sobre o dia e o seu próprio nome. Dando as respostas corretas deixou toda tropa aliviada. Já era a terceira queda desde Juiz de Fora. Ocorreriam mais quatro até o fim da viagem, perfazendo sete. Sempre ele, o número cabalístico.

                    De volta a sela do voluntarioso animal, Burton fez sinal para que todos montassem e seguissem viagem. Todos montaram prontamente colocando-se a caminho. Mas um dos cavaleiros se manteve desmontado. Chico havia acompanhado atentamente a queda do inglês. Saboreou cada segundo daquela trajetória rumo ao chão. A cena corria diante de seus olhos como se o criador estivesse retardando o tempo. Lentamente, quase em quadros, pintados passo a passo, viu o corpo do rival ganhar o solo. Viu satisfeito a bunda disforme do inglês chocar-se de encontro ao chão poeirento. Exatamente como, dizem, ocorreu com o imperador em visita ao local. Exatamente debaixo de um jacarandá secular, onde alguém teve a pachorra de pregar uma pequena tabuleta alusiva ao fato: ”Aqui caiu o imperador do Brasil, pai da Nação, de bunda no chão”.

                    Chico percebeu que do encontro do traseiro gordo de Burton e o solo famoso, além do barulho e da satisfação, resultou um projétil brilhante que foi se alojar comodamente debaixo do Jacarandá. A principio pensou tratar-se de uma lasca do próprio inglês, mas espantando os devaneios, chegou mais próximo do objeto. Era uma pedra negra, que apresentava uma cor e brilho jamais vista por aquelas bandas. Estava presa a um pequeno cordão, possivelmente de ouro.

                    Temeu apanhá-la, até mesmo porque, de nada adiantaria tê-la, se não poderia usa-la sem a ciência e a ira do patrão. Observa o artefato e imagina por que aquele inglês estúpido usaria uma pedra tão feia e sem graça. Instintivamente pousou a mão sobre seu patuá, feito pela negra Tereza, e que já lhe havia salvado de inúmeras mortes-certas. Considerou que aquele devia ser o amuleto de sorte do explorador, que também, segundo sabia, já havia escapado de inúmeras artimanhas da morte.

                    Lançou mão sobre a pedra e a fechou entre os dedos. Sentiu um calor queimar o membro, maior que o calor experimentado na noite anterior, quando atravessou, descalço, a fogueira de São João. Abriu a mão e contemplou a sua palma. A única parte clara de seu corpo estava mais negra que o resto de sua negritude. Assustado, lançou a pedra para fora do caminho e subindo apressado no cavalo, correu atrás da tropa que já sumia na curva do caminho.

                    A pedra acomodou-se, tranqüila, em uma posição próxima ao Jacarandá secular. Ficou ali contemplando o desenrolar do caminho por 136 anos, até que um outro Francisco, também Viana, vulgo Xico, ao descansar de uma viagem maluca, debaixo da árvore, a descobriria para sempre.

 

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