CAPÍTULO QUARTO

Cocho D’água – Brasil 1867

                    Isabel tentava se entregar ao sono, mas o ressonar da cadelinha Negra não permitia. Aquela minúscula espécie de Mastim Napolitano, naquela região denominada Cão-de-fila, simulava um sono cheio de ganidos e rangidos. Com certeza sentia a falta do resto da ninhada, deixada para trás na cidade de São João Del Rey. Isabel considerava uma temeridade aquele presente recebido de Mr. Lee, um inglês que se casara com uma nativa são-joanense, fincando raiz na cidade mineira há mais de 30 anos. A cadela era malhada no dorso, apesar de preta como um carvão; e de pouca, ou nenhuma serventia, era para a excursão. Aquela cabeça desproporcional ao resto do corpo dava-lhe um aspecto grotesco. Talvez seja exatamente por este motivo, que seu marido tanto se afeiçoara à pequena criatura.

                    Isabel espantou o ciúme com um menear de cabeça, e lançou o pensamento para a parede branca de adobe. De todos os pousos, até então, com certeza aquele era o mais sofrível. Estavam alojados em um casebre amplo, porém abafado e sujo. O telhado, de toras finas, segurava telhas toscas que desafiavam a proporção e a gravidade, em um traçado ondulado e torto. Isabel não era o que podemos julgar uma pessoa esnobe e exigente, mas não deixaria jamais de ser sobrinha do duque de Norfolk, portanto, uma nobre por parentesco. Já se passavam dezesseis dias, desde a partida do Rio de Janeiro e toda espécie de dormitório já lhe fora imposta até então. Seu Marido, prolixo como sempre, descrevia e avaliava cada um, dando-lhes nota e comentário. Pousos, ranchos, vendas, estalagens e hotéis; mas desta vez estavam hospedados na melhor casa, entre as dezesseis existentes, daquele pequeno vilarejo. Pela primeira vez todos dormiam juntos no mesmo cômodo, inclusive alguns dos moradores fixos. Ela, o marido, a cadelinha Negra, o criado Chico, dois filhos e um bisneto do anfitrião; que dormia com a esposa e mais dois no cômodo anexo. Nem ao menos fora possível instalar-se em redes. Isolavam-se do piso de terra batida em colchões de palha. O arraial, ou melhor, a vargem (pois segundo seu marido arraial é denominação de posto fortificado) ficava em uma grota e todos os 69 habitantes, descendentes do anfitrião, dividiam-se nas casas existentes.

                    A noite estava fria e úmida, e a falta de estrelas talvez prenunciasse chuva. Isabel cochila. Tudo estava perfeito: desde os arranjos até o vestido; da música ao fraque do noivo; até mesmo o descontentamento de sua mãe era imperceptível. Era primavera de 61. Isabel entra na capela católica e no altar está seu noivo. Isabel agora flexionada diante do altar. O padre fala, mas de sua boca não sai voz humana, apenas um ganido lamurioso e irritante. Isabel olha para trás e vê a igreja ser invadida por outra noiva. Agora são várias. A enxurrada de nubentes não tem fim. O Padre começa a ganir mais alto. Isabel acorda. Negra ressona.

                    Isabel relembra como foi difícil se unir àquele homem, sentado agora a média distância, e que escrevia sob a luz de lamparina. A grande diferença de idades não era o único empecilho, nem mesmo a religiosa. O caráter, aventureiro e cigano, é que tornara a oposição materna tão feroz. Mas em Isabel era o que mais a atraía: as aventuras, as viagens e as estórias. Porém, o homem que lhe atraíra, havia lhe traído. Já havia vivido todas as aventuras, e depois de casado não demonstrou o mesmo nomadismo. Olhando agora, atentamente, para seu parceiro, não conseguiu vislumbrar o descobridor do Tanganica, nem ao menos a sombra do dervixe que invadiu a Meca. Ele era agora o retrato da ruína. Sofria com as febres africanas herdadas e costumava acordar a noite, engasgado na própria saliva. Sua mente, apesar de ainda brilhante, não tinha o mesmo frescor de anos atrás. O físico perdera o porte quando abandonou a vida militar no ano do matrimônio, assumindo uma vida diplomática. As viagens eram muitas, mas enfadonhas, longe das aventuras sonhadas pela Sra. Burton. Essa era a primeira vez que ele permitira sua presença. Por isso ela não reclamava jamais, qualquer que fosse a agrura sofrida.

                    Até Barbacena a viagem transcorrera em diligência, que mesmo apinhada, proporcionava um certo conforto. Dali em diante o percurso estava sendo feito em montarias pouco honrosas, rabugentas e temperamentais. Cavalos “com orelhas de coelho”, segundo a definição de Lady Burton, que se revezava na montaria entre Machinho, um burrinho cinzento, e um cavalo baio que atendia, quando queria, pelo nome de Castanha. Chico ia montado em Roão e Richard domava o vivo e voluntarioso Camundongo. A tropa se completava com Miguel, o tocador, montando Alazão; Antônio, o guia, montando Prodígio; e mais três burros de cargas.

                    A sinfonia noturna se ampliava. Em dueto com a cadela Negra, entrava agora na orquestra o chiar asmático da bisavó, intercalado com uma tosse seca, que invadia ambos os cômodos. Isabel olhou para Richard e notou sua inquietação com a sonora interferência. Via o Marido recitando um poema entre os dentes, e sabia, que ele só recitava Camões quando estava irritado com alguma coisa. Negra agora choramingava. Richard, sem tirar os olhos das anotações, apanhou uma garrafa que estava ao alcance de suas mãos e fazendo bochecho com o líquido, lançou uma cusparada certeira no focinho da cadela. Um cheiro de destilado inundou o ar.

                    Isabel aspirou o embriagante odor e lembrou-se de Chico, dormindo impassível a curta distância. O criado era mais companheiro do que o próprio marido. Causavam grande rebuliço na sociedade tacanha e falsamente moralista da cidade de São Paulo. Amazona perfeita, Mrs. Burton percorria os arrabaldes da cidade sempre acompanhada do seu fiel escudeiro. Nas longas ausências do marido, encarcerado no consulado em Santos, esses raiders eqüinos eram a única aventura permitida a consulesa. Sem eles, e a presença do esperto Chico, sua vida em São Paulo seria mais enfadonha do que já era. Exceção feita aos saraus literários que não a agradavam tanto pela prosa, mas sim pela fauna. Conhecia nesses eventos, alguns brasileiros interessantes. Recentemente fora-lhe apresentado um poeta baiano, de nome Castro Alves, que grande impressão lhe causara. Mas no geral a sociedade lhe soava sem graça e estilo e a pequena colônia inglesa a ignorava por considerá-la esnobe. Suas cavalgadas com Chico era alvo de maledicência, que à boca-miúda insinuava que em breve “Lorde” Burton teria um mulatinho para criar.

                    Isabel, que poderia figurar na sociedade do século seguinte, dava de ombros com as insinuações e demonstrava, sempre em público, o carinho e admiração que nutria pelo marido. Era ciente da indiferença com que ele lhe tratava, não por ausência de afeto, mas por uma doutrina adquirida ao longo dos anos. Richard, anglicano de nascimento, bebera na fonte do Islã, nos cântaros indianos, nas cuias africanas e pouco antes de se casar freqüentara os Mórmons americanos. De todas essas visões, nenhuma dava à mulher posição de honra, e era natural que Mr. Burton visse na fêmea apenas uma necessidade social. Chegava a ser defensor fervoroso da poligamia, apesar de não praticá-la.

                    Os pensamentos de Isabel foram rasgados pela chiadeira da velha anfitriã. Foi só nesse momento que ela notou, que a cadelinha havia cessado seu resfolegar e sua lamuria, e dormia agora um sono de chumbo. A beberagem certeira embriagara a pobre criatura. Já testemunhara, os locais, sob o efeito daquele subproduto da cana, e sabia do seu poder. A velhota agora tossia a plenos pulmões, ou seria, talvez, pela ausência deles. Isabel Arundel Burton não pode evitar conjecturas entre destilado, cusparada e uma pobre velhinha resfriada. Sem essa alquimia cruel, passou a noite em claro.

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