CAPÍTULO SEXTO

Londres – Inglaterra 1862

                    A lâmina da tesoura fechava-se sobre a asa do corvo. A mão que manipulava o instrumento era de uma mulher. A ave mantinha-se impassível à sua sorte. Aquela mulher, de 43 anos, tinha todos os motivos do mundo para estar triste. Há pouco havia perdido o marido, companheiro de duas décadas, e agora teria que criar sozinha os nove filhos. Realmente, a depressão a abatera nos primeiros dias após a morte de Alberto, vítima da febre tifóide que infestava o reino. Mas sua vontade férrea ergueu-há Não era mulher de esmorecer facilmente.

                    Apanhando outro corvo no solo, voltava agora aos seus distantes 19 anos, quando recebeu de Deus aquele fardo, ora pesado, ora prazeroso. Às vezes mais prazeroso do que suas horas de intimidade com o prussiano morto. No dia em que recebeu aquele presente divino, experimentou um misto de tristeza e alegria, pois no mesmo dia perdera o pai, que tanto amava.

                    Deixou cair ao solo o segundo corvo mutilado, que saiu gorjeando seu funesto agouro. Ela lembrava o quanto amara os dois homens de sua vida. Como tinha motivos para ser triste aquela mulher, mas não era. Não agora.

                    O próximo corvo foi presa fácil. Rapidamente estava sob as axilas da predadora, com uma das asas estendida e vulnerável. O golpe era rápido e indolor. Ela fazia tudo parecer fácil. Afinal de contas, tinha um nome vitorioso, motivo ao qual creditava seu sucesso. Já havia enfrentado todas as tempestades daqueles anos difíceis e ainda se mantinha em pé. Muitos homens não suportariam a pressão. Seu primo torto, Nicolau, havia sucumbido. Antes de morrer mandara-lhe uma missiva, aonde profetizava uma inverdade: “O que está de pé na Europa? A Grã-Bretanha e a Rússia”.

                    - Não, caro Nicolau, somente a Grã-Bretanha está de pé. – pensava em voz alta, enquanto cortava a asa do quarto corvo.

                    Apesar da vida pessoal não lhe dar mais prazer, a pública era meritosa de júbilo. Sobrevivera aos ventos revoltosos que quase arrasaram o continente, e no meio dessa tormenta conseguira fortalecer sua posição. Não se importava com sua fortuna particular, que a colocava como a mulher mais rica do mundo, mas com o poder de seu reino, que lhe dava o título de a mais poderosa. Aquela mulher, que tinha todos os motivos para ser triste, não o era, pois ela era a própria Vitória, Rainha da Inglaterra.

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                    Burton margeava o era e, sem desgrudar o lenço do nariz. O Great Stink, mau cheiro, era insuportável. Os temores aliviaram os odores. Por qual motivo era chamado, com urgência, à Torre de Londres? O bilhete, redigido às pressas, não revelava qualquer coisa, mas o sinete que o timbrava dizia quem era a remetente. Isso bastava para que Burton entrasse pelo Traitor’s Gate, apesar de saber que por aquela entrada, que não era a principal, só entravam traidores. O Yeoman Warders barrou sua passagem com um sonoro e clássico “Quem vêm lá?”.

                    - Burton. Richard Burton! – nem precisou mostrar o salvo-conduto e o velho sentinela já abria o pesado portão, que rangeu e se esforçou em permanecer fechado. Ninguém saberia precisar a quanto tempo ele não era aberto.

                    Burton atravessou o largo pátio e entrou na construção medieval. A Bloody Tower não lhe trazia lembranças reconfortantes, e também para nenhum súdito de Sua Majestade. Ali, na torre sangrenta, foram encarcerados e mortos os filhos de Eduardo IV. Apesar de cinco séculos separá-lo do fato, o ambiente exalava o crime, como se os dois jovenzinhos ali estivessem para lembrá-lo. O castelo inteiro ressoava mistério. Residência real no inicio de sua longa vida, marcou a vida da cidade como prisão, aonde traidores, reais e imaginários, eram presos e executados. Burton começou a temer por sua sorte.

                    Os pensamentos ruins o abandonaram quando alcançou o gramado do pátio interno. Avistou uma senhora, acocorada como uma galinha, com os braços abertos como se desejasse abraçar o mundo. Diante dela, a pouco mais de dois metros, um corvo bailava, encurralado entre ela e o prédio principal, a White Tower.

                    - Cerca pela esquerda! – ordenou a mulher ao recém chegado, sem desgrudar os olhos da ave.

                    Burton lançou-se ao bípede, mas por ainda não estar completamente ambientado; ao ambiente e a situação; colaborou em tornar a fuga da ave mais fácil. O corvo decolou em vôo curto alojando-se em uma árvore próxima da Tower Green. A Rainha não expressou comentários e rapidamente agarrou um corvo que estava mais próximo, e mais colaborativo.

                    - Desculpe-me, por era-lo entrar pelo Portão dos traidores. Posso lhe garantir que sua vida não corre risco de execução. Para ir direto ao assunto, o motivo de sua presença aqui nada têm a ver com traição, muito pelo contrário. – falava enquanto tentava encaixar a ave debaixo do braço.

                    Burton, talvez, somente naquele instante percebeu que estava na presença da Rainha. Esboçou uma reverência e embaralhou meia dúzia de palavras, em uma tentativa vã de cumprimentá-la. Não acreditava estar na presença de Sua Majestade, a quem creditava grande admiração e devoção. Grande parte do sucesso do Império era devido ao empenho daquela mulher, que agora estava com um corvo metido no meio da axila esquerda. Aquela mulher mantinha domínio sobre a Ásia, África, Oceania e América. Recebera o reino capenga, com a perda das treze colônias americanas, mas conquistara muito mais. A Índia tornara-se, oficialmente, o que já era de fato e as colônias brancas da América, Oceania e África davam ao império a merecida fama de um “Império aonde o sol jamais se põe”.

                    - Tenho acompanhado suas aventuras, e nutro por sua pessoa grande admiração, Mr. Burton. Meu finado marido, Albert, considerou seu livro “Peregrinações a Meca e Medina” um clássico, comparando-o a Homero. Mas confesso que prefiro seus relatos do continente negro. A Coroa lhe deve grandes honras pelos serviços prestados. Vejo que seu rosto ainda trás marcas da aventura Somali...

                    Burton, instintivamente, flexionou o maxilar inferior e levou a língua ao fundo da boca, ao vazio dos dentes perdidos. A rainha continuava sua preleção:

                    - Tenho acompanhado pelos informes da Real Sociedade Geográfica seu debate, digamos um pouco acirrado, com seu antigo companheiro Mr. Speke. Francamente, Mr. Burton, deveria deixar de lado essa infantilidade. Essa querela nada acrescenta à nossa pátria. Se o homem julga ter encontrado a nascente do Nilo, assim seja...

                    -È uma ordem, seu desejo que eu esqueça o assunto? – interrompeu rispidamente Burton, que se esquece de tudo, quando o assunto é o Nilo.

                    -Não, meu caro! Faça como quiser! Até mesmo porque, tomei conhecimento que Mr. Livingstone empreenderá nova expedição, com o intuito de solucionar o problema. Na verdade, quando a coroa patrocina os devaneios da Sociedade Geográfica, não esta interessada em qual de seus seletos membros levará os méritos – tornando-se um pouco irritada, pelo assunto e pela resistência do corvo que não cedia a asa –...ou escreverá seu nome na história. Francamente, Mr. Burton, a Grã-Bretanha têm interesses maiores do que descobrir alguns filetes de água, mesmo que esse filete se transforme, montanha abaixo, no Nilo, o maior rio do mundo.

                    Burton fez menção de corrigir a rainha, introduzindo o Rio Amazonas na conversa, mas conhecedor da famosa inconstância real, e a proximidade da Tower Green, onde no passado eram executados os prisioneiros especiais, achou melhor manter o silêncio e o erro geográfico.

                    - Mr. Burton, o que nos interessa são participações como a da Somália, onde nosso glorioso país tem um interesse especial. Pode acreditar que sua expedição não foi um fracasso, como crê. Seus relatos e contatos naquela região, esquecida por Deus, deu-nos subsídios suficiente para levar adiante um projeto que tornará ainda maior nosso poder e glória. Sabe, como não é estranho a nenhum membro de nossa sociedade, que pretendemos fazer a ligação entre o Mar Vermelho e o Mediterrâneo. A conquista do chifre oriental da África, Mr. Burton, só foi possível graças a sua expedição. Sabia disso, Mr. Burton?

                    Burton mostrou-se surpreso, apesar de sempre ter compartilhado, consigo, aquela mesma teoria. Chegara a ser considerado espião pelos nativos, mas suas motivações eram, como sempre, a aventura e o conhecimento. A rainha não dava tempo a nenhuma intromissão verbal de Burton:

                    - Seus sete anos de Índia não renderam apenas bons relatos antropológicos e folclóricos. A Companhia das Índias Orientais não escolheu seu nome por acaso, para liderar a expedição Somali. Sabemos de suas habilidades especiais. Essa sua capacidade de disfarce é um dom realmente fascinante. Quem consegue enganar aqueles Xiitas fanáticos, consegue enganar qualquer um. – pronunciou Xiita entre os dentes, enquanto conseguia cortar a asa do corvo – É uma pena que tenha abandonado nosso exército Mr. Burton...

                    - É que... – tentou se esclarecer.

                    - Não precisa se esclarecer, Mr. Burton. Meu serviço secreto sabe tudo o que passa em sua mente. Eu sei que o serviço militar não lhe é quisto. Concordou apenas com a exigência do Cel. Burton, que após a frustrada tentativa de encaminhá-lo na vida eclesiástica, comprou sua vaga no exército da Companhia; Louvável sua atitude em satisfazer a vontade paterna, mas convenhamos, foi uma escolha acertada, meu caro, pois lhe proporcionou viajar as expensas da Companhia. Sabemos também que contraiu matrimônio recentemente com uma católica...

                    - Isabel somente é sobrinha... – Interrompeu apanhando um corvo, que estava próximo do seu pé direito, entregando-o a rainha.

                    - Obrigado... Eu também sei! Ela é sobrinha daquele líder católico, o duque de Norfolk. Mas fique tranqüilo, não é esse o motivo de sua presença aqui. Como disse, há interesses maiores em jogo, e questões religiosas não me interessam. O que me espanta é essa sua decisão de casar. Esse fato fugiu aos relatórios de meus agentes. – Vitória constatou que o corvo recebido já estava “avariado” e imediatamente o largou. Apanhou a penúltima vítima debaixo da árvore, onde se empoleirava o rebelde corvo voador. – Acredito que sua recente visita àquela terra de ingratos, seja responsável pelo fato. È verdade, realmente, que eles se casam com várias mulheres? Um hábito pouco digno para antigos súditos da rainha, e pior, penso, nossos irmãos de sangue. Esses mórmons me intrigam.

                    - Posso lhe garantir que a poligamia é um mal necessário para povoar as novas nações... – Disparou sem fôlego, para não ser interrompido.

                    - Mas sei que não pratica tal ato, alias, desculpe a indelicadeza, relataram-me que quase não divide o leito com sua esposa. – disse a rainha fixando o olhar no rubor de Mr. Burton. – Não precisa se explicar, Mr. Burton, todos nós sabemos que suas viagens tomam todo seu tempo, mantendo-o distante de sua jovem e bela cônjuge. Temo que serei responsável, em aumentar a agonia de Lady Isabel. Precisamos do senhor! – cortando a ponta da asa do sexto corvo, que habita o pátio interno da Torre de Londres. – Nossa situação no mapa-múndi está consolidada, mas precisamos garantir, a todo o custo, essa posição. Não nos esqueçamos do triste Rei George, que perdeu as colônias e o juízo para a vulgar Miss Liberty. O mundo, Mr. Burton, sopra ares nefastos sobre a face da Monarquia. Não preciso era lembrá-lo o que vêm ocorrendo no continente. Desde que assumi esse trono, presenciei muitas revoltas como as de 48. Itália, Prússia, França, Rússia, Espanha e várias outras nações balançam com regimes fracos e manifestações populares furiosas. Para nossa alegria, esta ilha está isolada desses temores. Mas Mr. Burton, preste atenção, não terei escrúpulos em garantir que assim seja para todo o sempre. – falava em discurso e olhava para o galho aonde o corvo, com os olhos fechados, aproveitava o crepúsculo. – A expansão de nosso poder sobre os outros povos, será a garantia de que a Coroa jamais cairá na Inglaterra. Está entendendo bem, Mr. Burton?.

                    Burton também contemplava o pássaro, temendo pelo futuro da ave agourenta. Sabia da lenda, assim como, era sabido de toda a população de Londres: Os sete corvos que habitam o complexo da Torre de Londres, segundo a lenda, zelam pelo bem estar da Coroa. O dia em que eles forem embora, o reinado perecerá.

                    - Mr. Burton, essa conversa é secreta e deverá ficar restrita aos muros deste castelo. Nem ao menos sua bela esposa poderá ter ciência desse assunto. Temos interesses em alguns países da África Ocidental e naquele belo torrão chamado Brasil. Nossos súditos já se instalaram no Brasil e de lá tiram uma magnífica produção de ouro. Mr. Gordon dirige, com brilhantismo, uma mina desse metal no interior selvagem. Parece que ele tem a simpatia dos selvagens locais, pois não vejo como sobreviveria entre eles, se assim não fosse. A mina chama-se Old Moutain...

                    - Perdão, majestade, a mina se chama Morro Velho. – Burton pronunciou o nome da mina em português, pois já ouvira falar da mina nas conversas da Real Sociedade Geográfica, da qual fazia parte também Mr. Gordon.

                    - Havia me esquecido que o senhor domina o português. Alias, outra de suas inúmeras habilidades. As línguas. Como consegue se fazer entender, naquela língua tão anasalada? Parece que vão lhe cuspir na face a qualquer momento. God save me! Um horror! – gritou, esboçando subir na árvore.

                    -Majestade, a língua portuguesa é de uma riqueza só comparada a nossa. Shakespeare encontrará similar na terra ibérica. Recentemente, traduzi alguma coisa do poeta maior lusitano, Camões, este sim, um verdadeiro Homero. – estufou o peito e já ia começar a declamar sua passagem predileta dos Lusíadas, quando foi interrompido, sem cerimônia, pela rainha.

                    - Mas o ouro, caro Burton, é apenas ouro, e em breve não será mais o padrão que regulará o mundo. Por favor, não espalhe essa informação privilegiada. O mundo está se tornando por demais beligerante, e não podemos matar o inimigo com uma bala de ouro. O Oeste africano, assim como o interior selvagem brasileiro, é rico em minério de ferro, principalmente, segundo meus cientistas, manganês e bauxita, próprios para incrementar ainda mais nossa industria e, principalmente, nosso poder bélico. O senhor irá ser nomeado cônsul e após passar um período na região da Costa do Ouro, assumirá o consulado brasileiro em Santos, aonde deverá me manter informada sobre o progresso de suas investigações. – A rainha Vitória apanha um graveto e tenta inutilmente atrair para si a atenção do corvo.

                    - O Imperador brasileiro... – continuou a rainha –parece-me uma presa fácil para nossos intentos. Entusiasta do progresso, causou boa impressão quando esteve aqui na Exposição de 51. Tinha 25 anos e já se mostrava um pseudo-erudito, como é comum a esses monarcas tropicais. Alias, God save me, ele é o único monarca da América sulista. Compra todas modernidades que aparece pela frente. Nosso maior importador de locomotivas é o pobre Pedro e lá ainda não têm muitas linhas férreas. Bastante suscetível, Mr. Burton, acredito que não será páreo para sua capacidade extraordinária. Assim como o resto da Europa, Mounsier Pedro, também anda as voltas com revoltas populares. Precisamos dominar aquele país, que não merece ser dezenas de vezes maior que nossa bela ilha.

                    - O que Vossa Alteza está me pedindo é que seja espião de uma nação amiga!? – Exclamou Burton, tendo certeza de que a Rainha não o escutava.

                    - Nossa correspondência deverá ser mantida em sigilo, devendo ser enviada para o palácio de Buckingham, na mala diplomática, em envelope pardo identificado apenas pela letra V. A partir de agora, Mr. Burton, não poderá mais, em suas correspondências, me tratar por alteza, majestade, ou qualquer outro nome que me identifique como tal. Deve se dirigir a minha pessoa como Mr. V. Gostaria de escolher um codinome, Mr. Burton?

                    Burton olhou para a ave negra empoleirada sobre suas cabeças. Era o sétimo corvo, por enquanto, o único, ainda com as asas intactas. Gostou da bravura do animal e lembrou-se do cabalismo do número. Sua mente viajou: O Tawaf – sete voltas na Caaba; O Say – sete vezes entre os pórticos; os sete centímetros de rocha negra e agora sete corvos na Torre de Londres. Lembrou o nome do filho de Adão, Seth, que dizem, construiu a primeira Caaba. Não pensou mais:

                    - Seth. Pode me chamar de Seth.

                    A rainha pareceu não entender a relação entre o codinome de seu novo funcionário e a ave teimosa:

                    - Muito bem Mr. Burton. A partir de agora será o agente sete, a serviço de Sua Majestade. – e dando as costas bruscamente, saiu aos berros em direção ao prédio da Guarda do castelo – James!!! Pelo amor de Deus, Sua rainha e da própria Inglaterra, traga-me uma escada. Rápido.

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